20 de fev. de 2023

Fernando Pessoa MARIA: Amo como o amor ama.

              MARIA:


Amo como o amor ama.


Não sei razão pra amar-te mais que amar-te.


Que queres que te diga mais que te amo,


Se o que quero dizer-te é que te amo?


Não procures no meu coração...


Quando te falo, dói-me que respondas


Ao que te digo e não ao meu amor.


Quando há amor a gente não conversa:


Ama-se, e fala-se para se sentir.


Posso ouvir-te dizer-me que tu me amas,


Sem que mo digas, se eu sentir que me amas.


Mas tu dizes palavras com sentido,


E esqueces-te de mim; mesmo que fales


Só de mim, não te lembras que eu te amo.


Ah, não perguntes nada, antes me fala


De tal maneira, que, se eu fora surda,


Te ouvisse toda com o coração.


Se te vejo não sei quem sou; eu amo.


Se me faltas, (...)


Mas tu fazes, amor, por me faltares


Mesmo estando comigo, pois perguntas


Quando deves amar-me. Se não amas,


Mostra-te indiferente, ou não me queiras,


Mas tu és como nunca ninguém foi,


Pois procuras o amor pra não amar,


E, se me buscas, é como se eu só fosse


O Alguém pra te falar de quem tu amas.


Diz-me porque é que o amor te faz ser triste?


Canso-te? Posso eu cansar-te se amas?


Ninguém no mundo amou como tu amas.


Sinto que me amas, mas que a nada amas,


E não sei compreender isto que sinto.


Dize-me qualquer palavra mais sentida


Que essas palavras que, como se as perderas,


                                                               buscas


E encontras cinzas.


Quando te vi, amei-te já muito antes.


Tornei a achar-te quando te encontrei.


Nasci pra ti antes de haver o mundo.


Não há coisa feliz ou hora alegre


Que eu tenha tido pela vida fora,


Que não o fosse porque te previa,


Porque dormias nela tu futuro,


E com essas alegrias e esse prazer


Eu viria depois a amar-te. Quando,


Criança, eu, se brincava a ter marido,


Me faltava crescer e o não sentia,


O que me satisfazia eras já tu,


E eu soube-o só depois, quando te vi,


E tive para mim melhor sentido,


E o meu passado foi como uma estrada


Iluminada pela frente, quando


O carro com lanternas vira a curva


Do caminho e já a noite é toda humana.


Tens um segredo? Dize-mo, que eu sei tudo


De ti, quando m'o digas com a alma.


Em palavras estranhas que m'o fales,


Eu compreenderei só porque te amo.


Se o teu segredo é triste, eu saberei


Chorar contigo até que o esqueças todo.


Se o não podes dizer, dize que me amas,


E eu sentirei sem qu'rer o teu segredo.


Quando eu era pequena, sinto que eu


Amava-te já hoje, mas de longe,


Como as coisas se podem ver de longe,


E ser-se feliz só por se pensar


Em chegar onde ainda se não chega.


Amor, diz qualquer coisa que eu te sinta!


                FAUSTO:


Compreendo-te tanto que não sinto.


Oh coração exterior ao meu!


Fatalidade filha do destino


E das leis que há no fundo deste mundo!


Que és tu a mim que eu compreenda ao ponto


De o sentir...?


                MARIA:


Para que queres compreender


Se dizes qu'rer sentir?


s.d.

Fausto - Tragédia Subjectiva. Fernando Pessoa. (Texto estabelecido por Teresa Sobral Cunha. Prefácio de Eduardo Lourenço.) Lisboa: Presença, 1988. - 99.

1ª versão inc.: “Primeiro Fausto” in Poemas Dramáticos. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de Eduardo Freitas da Costa.) Lisboa: Ática, 1952 (imp.1966, p.126).

Carnaval :: Catherine Krulik









13 de fev. de 2023

Fernando Pessoa (Álvaro de Campos) :: REALIDADE

Sim, passava aqui frequentemente há vinte anos...

Nada está mudado — ou, pelo menos, não dou por isso —

Nesta localidade da cidade...

Há vinte anos!...

O que eu era então! Ora, era outro...

Há vinte anos, e as casas não sabem de nada...

Vinte anos inúteis (e sei lá se o foram!

Sei eu o que é útil ou inútil?)...

Vinte anos perdidos (mas o que seria ganhá-los?)

Tento reconstruir na minha imaginação

Quem eu era e como era quando por aqui passava

Há vinte anos...

Não me lembro, não me posso lembrar.

O outro que aqui passava então,

Se existisse hoje, talvez se lembrasse...

Há tanta personagem de romance que conheço melhor por dentro

Do que esse eu-mesmo que há vinte anos passava aqui!

Sim, o mistério do tempo.

Sim, o não se saber nada,

Sim, o termos todos nascido a bordo.

Sim, sim, tudo isso, ou outra forma de o dizer...

Daquela janela do segundo-andar, ainda idêntica a si mesma,

Debruçava-se então uma rapariga mais velha que eu, mais lembradamente de azul.

Hoje, se calhar, está o quê?

Podemos imaginar tudo do que nada sabemos.

Estou parado física e moralmente: não quero imaginar nada...

Houve um dia em que subi esta rua pensando alegremente no futuro.

Pois Deus dá licença que o que não existe seja fortemente iluminado.

Hoje, descendo esta rua, nem no passado penso alegremente.

Quando muito, nem penso...

Tenho a impressão que as duas figuras se cruzaram na rua, nem então nem agora,

Mas aqui mesmo, sem tempo a perturbar o cruzamento.

Olhámos indiferentemente um para o outro.

E eu o antigo lá subi a rua imaginando um futuro girassol.

E eu o moderno lá desci a rua não imaginando nada.

Talvez isto realmente se desse...

Verdadeiramente se desse...

Sim, carnalmente se desse...

Sim, talvez...

15-12-1932

Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993). - 293.

6 de fev. de 2023

Donas de casa:: Anne Sexton (1928 -1974, EUA)


Karin Dawn Kelshall

Algumas mulheres casam-se com casas. 

É outro tipo de pele, tem um coração, 

uma boca, um fígado e movimento de entranhas. 

As paredes são permanentes e cor-de-rosa. 

Vejam como ela está ajoelhada o dia todo, 

lavando-se fielmente de alto a baixo 

Os homens entram à força, atraídos como Jonas 

para as suas mães carnudas. 

Uma mulher é a sua própria mãe 

e isso é o mais importante. 


 LIVE OR DIE (1966)

João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)