Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
31 de mar. de 2013
30 de mar. de 2013
O pó dourado de tudo o que se concebe de Maria Gabriela Llansol
Se eu tivesse uma única expressão, com sentido perfeito, para dizer a H., dir-lhe-ia: traz-me apenas o pó dourado de tudo o que se concebe; e se eu tivesse apenas uma outra, sem precedentes, para dizer a A., dir-lhe-ia: a sensualidade a que aspiramos tem a sua parte de contemplação e de repouso; e se eu estivesse face ao homem, terceiro e último elo, e o mais forte, dir-lhe-ia: a sensibilidade não se pensa, embora faça parte do pensamento.
Fonte: Dossier dactiloscrito nº 8, p. 812, 1988?.
29 de mar. de 2013
Primeira Infância de Adélia Prado
João Vaz
Era rosa, era malva, era leite,
as amigas de minha mãe vaticinando:
vai ser muito feliz, vai ser muito famosa
Eram rendas, pano branco, estrela dalva,
benza-te a cruz, no ouvido, na testa.
Sobre tua boca e teus olhos
o nome da trindade te proteja.
Em ponto de marca no vestidinho: navios.
Todos à vela. A viagem que eu faria
em roda de mim.
fonte: Poesia Reunida. Siciliano, 1991.
28 de mar. de 2013
Sempre que se começa a ter amor a alguém de Guimarães Rosa
In: Grande sertão: veredas. Nova Fronteira, 2001. p. 155.
27 de mar. de 2013
Cavalos de Camila Senna
Meu Cavalo ainda é branco...
Minha rua ainda é a ladrilhar...
Os meus sonhos, ainda de menina,
que cresceu sorrindo pra vida...
26 de mar. de 2013
Que maravilha das maravilhas! de Monteiro Lobato
Paulo Borges
- Que maravilha das maravilhas! exclamou Narizinho, de olhos arregalados, sentindo uma tontura tão forte que teve de sentar-se para não cair. Era um vestido que não lembrava nenhum outro desses que aparecem nos
figurinos. Feito de seda? Qual seda nada! Feito de côr - e côr do mar! Em vez de enfeites conhecidos - rendas, entremeios, fitas, bordados, plissés ou vidrilhos era enfeitado com peixinhos do mar. Não de alguns peixinhos só, mas de todos os peixinhos (...) E esses peixinhos-jóias não estavam pregados no tecido, como os enfeites e aplicações que se usam na terra. Estavam vivinhos, nadando na côr do mar como se nadassem n’agua. De modo que o vestido variava sempre, e variava tão lindo, lindo, lindo, que a tontura da menina apertou e ela pôs-se a chorar.
-É a vertigem da beleza! exclamou dona Aranha sorridente, dando-lhe a cheirar um vidrinho de éter.
(...)
O mais lindo era que o vestido não parava um só instante. Não parava de faiscar e brilhar, e piscar e furtar-côr, porque os peixinhos não paravam de nadar nele, descrevendo as mais caprichosas curvas por entre as algas boiantes. As algas ondeavam as suas cabeleiras verdes e os peixinhos brincavam de rodear os fios ondulantes sem nunca toca-los nem com a pontinha do rabo. De modo que tudo aquilo virava e mexia e subia e descia e corria e fugia e nadava e boiava e pulava e dançava que não tinha fim.
LOBATO, J.B.M. Reinações de Narizinho.
25 de mar. de 2013
Guardar de Antonio Cicero
Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro
Do que um pássaro sem voos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.
In: Os cem melhores poemas brasileiros do século. Editora Objetiva
24 de mar. de 2013
Desenraizados de Cesare Pavese
Van Gogh
Chega de mar. Já vimos mar que chegue.
Ao entardecer, quando deslavada a água se estende
e esfuma no nada, o meu amigo olha-a fixamente
e eu fixo o meu amigo e nenhum de nós fala.
Chegada a noite, acabamos por nos fechar nos fundos duma taberna,
perdidos no meio do fumo, e bebemos. O meu amigo tem sonhos
(o bramir do mar torna os sonhos um tanto monótonos)
em que a água é apenas o espelho, entre uma ilha e outra,
que reflecte colinas salpicadas de flores selvagens e cascatas.
Quando bebe, dá-lhe para isso. De olhos postos no copo,
vê-se a erguer colinas verdejantes sobre a planura do mar.
As colinas, a mim agradam-me; e deixo-o falar do mar
porque a água é tão clara que se vêem mesmo as pedras do fundo.
Eu, o que vejo é só colinas, e enchem-me o céu e a terra
com as linhas nítidas dos seus perfis, distantes ou próximas.
Mas as minhas são agrestes, estriadas de vinhedos
que crescem penosamente num solo calcinado. O meu amigo aceita-as
e quer vesti-las de flores e frutos selvagens
para nelas descobrir, entre risos, raparigas mais nuas que os frutos.
Não é preciso: aos meus sonhos mais agrestes não falta um sorriso.
Se amanhã, cedinho, nos metermos ao caminho,
poderemos encontrar nessas colinas, no meio das vinhas,
uma rapariga de pele morena, tisnada pelo sol,
e, talvez, metendo conversa, comer-lhe algumas uvas.
trabalhar cansa
trad.carlos leite
cotovia
1997
23 de mar. de 2013
Fundo de livro de Maria Gabriela LLansol
passaremos a viver noutro fundo de livro e de linguagem.
E teremos, então, uma inquietação mais simples.
fonte: Um Beijo Dado Mais Tarde
22 de mar. de 2013
Névoa de Fernando Pessoa
Amanda RaeK
Há entre mim e o mundo uma névoa que impede que eu veja as coisas
como verdadeiramente são — como são para os outros.
Sinto isto.
21 de mar. de 2013
20 de mar. de 2013
Crepúsculo de Al Berto
(…)
Chegava a qualquer cidade e alugava dois ou três quartos, distantes uns dos outros, mas nunca pernoitava duas vezes de seguida no mesmo.
Em todos eles simulava viver há muito tempo. Num, espalhava bugigangas de plástico, compradas aos vendedores ambulantes, sobre os poucos desengonçados móveis. Noutro, pendurava roupa nos pregos que tinham servido para pendurar estampas baratas, e que alguém se dera ao incómodo de roubar.
Por vezes, deitado, olhava para os pregos espetados nas paredes e tentava perceber o que levava alguém a roubar aquelas arrumadinhas paisagens suíças que, infalivelmente, decoravam os quartos das pensões. E adormecia a pensar que no outro quarto cobrira as paredes com fotografias, e era nesse quarto que lhe apetecia estar.
(…)
fonte: Lunário. assírio & Alvim, 1999.
Al Berto, pseudônimo de Alberto Raposo Pidwell Tavares, GCSE (Coimbra, 1948 - Lisboa, 1997), poeta, pintor, editor e animador cultural português.
Chegava a qualquer cidade e alugava dois ou três quartos, distantes uns dos outros, mas nunca pernoitava duas vezes de seguida no mesmo.
Em todos eles simulava viver há muito tempo. Num, espalhava bugigangas de plástico, compradas aos vendedores ambulantes, sobre os poucos desengonçados móveis. Noutro, pendurava roupa nos pregos que tinham servido para pendurar estampas baratas, e que alguém se dera ao incómodo de roubar.
Por vezes, deitado, olhava para os pregos espetados nas paredes e tentava perceber o que levava alguém a roubar aquelas arrumadinhas paisagens suíças que, infalivelmente, decoravam os quartos das pensões. E adormecia a pensar que no outro quarto cobrira as paredes com fotografias, e era nesse quarto que lhe apetecia estar.
(…)
fonte: Lunário. assírio & Alvim, 1999.
Al Berto, pseudônimo de Alberto Raposo Pidwell Tavares, GCSE (Coimbra, 1948 - Lisboa, 1997), poeta, pintor, editor e animador cultural português.
19 de mar. de 2013
Pequenos martelinhos de Walter Benjamin
Achar palavras para aquilo que se tem diante dos olhos - quão difícil pode ser isso! Porém quando elas chegam, batem contra o real com pequenos martelinhos até que, como de uma chapa de cobre, dele tenham extraído a imagem. BENJAMIN, W. Obras Escolhidas II - Rua de Mão Única. p.203.
18 de mar. de 2013
Paineira, sumaúma, barriguda, paina-de-seda, paineira-rosa, árvore-de-paina, árvore-de-lã
É uma árvore com até vinte metros de altura, tronco cinzento-esverdeado com estrias fotossintéticas e fortes acúleos rombudos, muito afiados nos ramos mais jovens.
O tronco das paineiras tem boa capacidade fazer fotossíntese e tem coloração esverdeada até quando tem um bom porte; isto auxilia o crescimento mesmo quando a árvore está despida de folhas; é comum, também, paineiras apresentarem uma espécie de alargamento na base do caule, daí o apelido "barriguda".
As folhas são compostas palmadas e caem na época da floração. As flores são grandes, com cinco pétalas rosadas com pintas vermelhas e bordas brancas. Há uma variedade menos comum, com flores brancas.
Os frutos são cápsulas verdes, que, quando maduras, rebentam (deiscentes), expondo as sementes envoltas em fibras finas e brancas que auxiliam na flutuação e que são chamadas paina.
A partir dos vinte anos de idade, aproximadamente, os espinhos costumam começar a cair na parte baixa do caule e, gradualmente, também caem nas partes mais altas da árvore, com o engrossamento da casca. Diz-se, no Brasil, que isto permite à árvore receber ninhos de pássaros, o que seria impossível de acontecer quando esta tinha espinhos longos e pontiagudos; assim, flores e frutos já não estão presentes, mas a árvore continua a dar sua contribuição à natureza hospedando os passarinhos. Esta não é uma regra para todas as paineiras; algumas paineiras com mais de vinte metros, por exemplo, continuam com espinhos muito grandes na parte baixa, provavelmente como defesa de insetos do local.
Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
A estrada, como uma senhora de Fernando Pessoa
A estrada, como uma senhora,
Só dá passagem legalmente.
Escrevo ao sabor quente da hora
Baldadamente.
Não saber bem o que se diz
É um pouco sol e um pouco alma.
Ah, quem me dera ser feliz.
Teria isto, mais a calma.
Bom campo, estrada com cadastro,
Legislação entre erva nata.
Vai atar a alma com um nastro
Só para ver quem ma desata.
31-8-1930
Poesias Inéditas (1919-1930). Fernando Pessoa. (Nota prévia de Vitorino Nemésio e notas de Jorge Nemésio.) Lisboa: Ática, 1956 (imp. 1990). - 183.
Nastro: Fita estreita de linho, algodão ou outro fio.
Poesias Inéditas (1919-1930). Fernando Pessoa. (Nota prévia de Vitorino Nemésio e notas de Jorge Nemésio.) Lisboa: Ática, 1956 (imp. 1990). - 183.
Nastro: Fita estreita de linho, algodão ou outro fio.
17 de mar. de 2013
Retrato de mulher de Wislawa Szymborska (1923 – 2012)
Modigliani
Deve ser para todos os gostos.
Mudar só para que nada mude.
É fácil, impossível, difícil, vale tentar.
Seus olhos são, se preciso, ora azuis, ora cinzentos,
negros, alegres, rasos d´água sem nenhuma razão.
Dorme com ele como a primeira que aparece, a única no mundo.
Dá-lhe quatro filhos, nenhum filho, um.
Ingênua, mas a que melhor aconselha.
Fraca, mas aguenta.
Não tem cabeça, pois vai tê-la.
Lê Jaspers e revistas de mulher.
Não entende de parafusos mas constrói uma ponte.
Jovem, como sempre jovem, ainda jovem.
Segura nas mãos um pardalzinho de asa partida
seu próprio dinheiro para uma viagem longa e longínqua
um cutelo para carne, uma compressa, um cálice de vodca.
Corre para onde, não está cansada.
Claro que não, só um pouco, muito, não importa.
Ou ela o ama ou é teimosa.
Para o bem, para o mal e para o que der e vier.
tradução de Regina Przybycien, Poemas, Companhia das Letras
16 de mar. de 2013
Abbas Kiarostami
Traço vermelho sobre o branco da neve,
presa ferida
que coxeia
Um potro branco
nasceu
de uma égua negra
ao alvorecer
O vento levará consigo
flores de cerejeira
até à alvura das nuvens
Por cada onda alta
três ondas baixas,
por cada três ondas baixas
uma onda alta
Acompanhei
a lua
ao coração de uma nuvem escura,
bebi vinho e adormeci
Quando regressei à terra natal
a casa paterna
já não existia nem a voz de minha mãe
O céu
pertence-me,
a terra
pertence-me
como sou rico!
Um mendicante
acordou sobre a margem de um regato
um sedento
acordou sobre um tesouro
abbas kiarostami
«un lupo in agguato» (um lobo ao ataque)
ed. einaudi tascabili
tradução de mário rui de oliveira.
e a tradução do texto persa é da responsabilidade de ricardo zipoli.
15 de mar. de 2013
Coreópsis, Margaridinha-amarela
A coreópsis apresenta ramagem densa e ramificada, com folhas espessas e lanceoladas com uma coloração verde vibrante. As flores são diminutas, como em outras plantas da família Asteraceae, e reunidas em capítulos solitários, simples ou semi-dobrados, sobre longos pedúnculos. As pétalas da coloração expandida são amarelas ou alaranjadas, largas e com bordas denteadas. O contraste da folhagem com as flores tem grande efeito decorativo.
A floração se estende por todo o ano, em climas quentes, mas é mais abundante no verão. Rústica, tolera solos pobres, secas moderadas, além de ventos fortes e salinidade no solo, tornando-se uma boa escolha em jardins de praia.
Devem ser cultivadas sempre a pleno sol em solo fértil, leve e enriquecido com matéria orgânica para uma boa produção. Apesar de perene, requer reformas bianuais, através do replantio. As regas devem ser regulares. Têm potencial invasivo, podendo tornar-se daninha. Multiplica-se por divisão das touceiras e por sementes.
Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
Um passo de dança de Fernando Sabino
Façamos da interrupção um caminho novo.
Da queda um passo de dança,
do medo uma escada,
do sonho uma ponte, da procura um encontro!
Fernando Sabino
14 de mar. de 2013
La Vida es Sueño de Hélio Pellegrino
A pedra a pedra como o fogo com suas resinas e ramas a pedra como o fogo é um sonho de pálpebras abertas. O sonho é quando no veludo íntimo da noite fogo e pedra se sonham: — as pálpebras cerradas.
No jardim que o pensamento permite de Maria Gabriela Llansol
in: Parasceve. Puzzles e ironias. Relógio d'Água, 2001.
13 de mar. de 2013
O dia já envelheceu de Manoel de Barros
Van Gogh "Landscape At Twilight"
No fim da tarde, nossa mãe aparecia nos fundos do quintal :
Meus filhos, o dia já envelheceu, entrem pra dentro.
Manoel de Barros
12 de mar. de 2013
Artes - Maria Lúcia Dal Farra
Picasso
Não distingo o que queres
e nem triunfo sobre
o enigma que nos atrai
(assim dessemelhantes).
Mas se adivinho o que há dentro do teu cenho
e se (acaso)
empreendo o que (querendo) não fazes por
consumar –
ganho (em troca)
a solidão patética de quem erra
por acertar.
O amor é isso:
cisco que tolda a vista
tão só pra se enxergar.
fonte: Alumbramentos, 2012
11 de mar. de 2013
Às vezes, em sonho triste de Fernando Pessoa
Vieira da Silva
Às vezes, em sonho triste
Nos meus desejos existe
Longinquamente um país
Onde ser feliz consiste
Apenas em ser feliz.
Vive-se como se nasce
Sem o querer nem saber.
Nessa ilusão de viver
O tempo morre e renasce
Sem que o sintamos correr.
O sentir e o desejar
São banidos dessa terra.
O amor não é amor
Nesse país por onde erra
Meu longínquo divagar.
Nem se sonha nem se vive:
É uma infância sem fim.
Parece que se revive
Tão suave é viver assim
Nesse impossível jardim.
21-11-1909
Novas Poesias Inéditas. Fernando Pessoa. (Direcção, recolha e notas de Maria do Rosário Marques Sabino e Adelaide Maria Monteiro Sereno.) Lisboa: Ática, 1973 (4ª ed. 1993). - 15.
Comandando os passos - Livia Garcia Roza
Ruth S Harris
Poucas coisas são mais bonitas
do que crianças caminhando.
A alegria comandando os passos.
10 de mar. de 2013
Teresa de Manuel Bandeira
Picasso
A primeira vez que vi Teresa
Achei que ela tinha pernas estúpidas
Achei também que a cara parecia uma perna
Quando vi Teresa de novo
Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo
(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse)
Da terceira vez não vi mais nada
Os céus se misturaram com a terra
E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.
9 de mar. de 2013
Amor de Eugenio de Andrade
é uma ave a tremer
nas mãos duma criança.
Serve-se de palavras
por ignorar
que as manhãs mais limpas
não têm voz.
8 de mar. de 2013
A Ovelha de Henriqueta Lisboa
Encontrastes acaso
a ovelha desgarrada?
A mais tenra
do meu rebanho?
A que despertava ao primeiro
contato do sol?
A que buscava a água sem nuvens
para banhar-se?
A que andava solitária entre as flores
e delas retinha a fragrância
na lã doce e fina?
A que temerosa de espinhos
aos bosques silvestres
preferia o prado liso, a relva?
A que nos olhos trazia
uma luz diferente
quando à tarde voltávamos
ao aprisco?
A que nos meus joelhos brincava
tomada às vezes de alegria louca?
A que se dava em silêncio
ao refrigério da lua
após o longo dia estival?
A que dormindo estremecia
ao menor sussurro de aragem?
Encontrastes acaso
a mais estranha e dócil
das ovelhas?
Aquela a que no coração eu chamava
– a minha ovelha?
Em: Nova Lírica: poemas selecionados, Henriqueta Lisboa, Belo Horizonte, Imprensa Oficial: 1971
7 de mar. de 2013
O Dia Deu em Chuvoso - Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)
Chuva de Oswaldo Goeldi
O dia deu em chuvoso.
A manhã, contudo, esteve bastante azul.
O dia deu em chuvoso.
Desde manhã eu estava um pouco triste.
Antecipação! Tristeza? Coisa nenhuma?
Não sei: já ao acordar estava triste.
O dia deu em chuvoso.
Bem sei, a penumbra da chuva é elegante.
Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante.
Bem sei: ser susceptível às mudanças de luz não é elegante.
Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante?
Dêem-me o céu azul e o sol visível.
Névoa, chuvas, escuros — isso tenho eu em mim.
Hoje quero só sossego.
Até amaria o lar, desde que o não tivesse.
Chego a ter sono de vontade de ter sossego.
Não exageremos!
Tenho efetivamente sono, sem explicação.
O dia deu em chuvoso.
Carinhos? Afetos? São memórias...
É preciso ser-se criança para os ter...
Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!
O dia deu em chuvoso.
Boca bonita da filha do caseiro,
Polpa de fruta de um coração por comer...
Quando foi isso? Não sei...
No azul da manhã...
O dia deu em chuvoso.
Álvaro de Campos, in "Poemas" Heterônimo de Fernando Pessoa
6 de mar. de 2013
5 de mar. de 2013
Cadeira de balanço de Carlos Drummond de Andrade
(...)
o balanço manso manso da cadeira de balanço é convite ao descanso à maneira bem mineira. Se na era eletrônica uma crônica, pobrezinha, vale menos que a palhinha da cadeira (verba vana), a pedida verdadeira é tirar uma pestana devagar no remanso da cadeira de balanço. In Viola de Bolso, 1955 In Poesia Completa, pag. 387 |
4 de mar. de 2013
A paixão segundo G. H. de Clarice Lispector
Heru Suryoko
Este livro é como um livro qualquer. Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada. Aquelas que sabem que a aproximação, do que quer que seja, se faz gradualmente e penosamente – atravessando inclusive o oposto daquilo que vai se aproximar. Aquelas pessoas que, só elas, entenderão bem devagar que este livro nada tira de ninguém. A mim, por exemplo, o personagem G.H. foi dando pouco a pouco uma alegria difícil mas chama-se alegria.
3 de mar. de 2013
ADIAMENTO de Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)
Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjectividade objectiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje qual é o espectáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espectáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...
O porvir...
Sim, o porvir...
14-4-1928
Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993). - 266.
1ª publ. in Solução Editora, nº1. Lisboa 1929.
Para uma Menina com uma Flor de Vinicius de Moraes
Roman Urbinskiy
E porque você é uma menina com uma flor e chorou na estação de Roma porque nossas malas seguiram sozinhas para Paris e você ficou morrendo de pena delas partindo assim no meio de todas aquelas malas estrangeiras.
2 de mar. de 2013
Fui Sabendo de Mim de Mia Couto
Fui sabendo de mim
por aquilo que perdia
pedaços que saíram de mim
com o mistério de serem poucos
e valerem só quando os perdia
fui ficando
por umbrais
aquém do passo
que nunca ousei
eu vi
a árvore morta
e soube que mentia
in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"
1 de mar. de 2013
Ouriço
… tem a elegância do ouriço: por fora, é crivada de espinhos, uma verdadeira fortaleza, mas tenho a intuição de que dentro é tão simplesmente requintada quanto os ouriços, que são uns bichinhos falsamente indolentes, ferozmente solitários e terrivelmente elegantes.
Muriel Barbery. A Elegância do ouriço. Companhia das Letras, 2008.
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Ekaterina Pozdniakova Não sei como são as outras casas de família. Na minha casa todos falam em comida. “Esse queijo é seu?” “Não, é...