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13 de jul. de 2016

Amar é Sempre Descobrir o Outro com a sua Diferença Inesperada - Contardo Calligaris


Receita do amor que dura: amar o outro não apesar de sua diferença, mas por ele ser diferente.
Em geral , na literatura, no cinema e nas nossa fantasias, as histórias de amor acabam quando os amantes se juntam (é o modelo Cinderela) ou, então, quando a união esbarra num obstáculo intransponível (é o modelo Romeu e Julieta). No modelo Cinderela, o narrador nos deixa sonhando com um “viveram felizes para sempre”, que seria a “óbvia” conseqüência da paixão. No modelo Romeu e Julieta, a felicidade que os amantes teriam conhecido, se tivessem podido se juntar, é uma hipótese indiscutível. O destino adverso que separou os amantes (ou os juntou na morte) perderia seu valor trágico se perguntássemos: será que Romeu e Julieta continuariam se amando com afinco se, um dia, conseguissem deitar-se juntos sem que Romeu tivesse que escalar a casa de Julieta até o famoso balcão? Ou se, em vez de enfrentar a oposição letal de suas ascendências, eles passassem os domingos em espantosos churrascos de família?
Talvez as histórias de amor que acabam mal nos fascinem porque, nelas, a dificuldade do amor se apresenta disfarçada. A luta trágica contra o mundo que se opõe à felicidade dos amantes pode ser uma metáfora gloriosa da dificuldade, tragicômica e inglória, da vida conjugal. O casal que dura no tempo, em regra, não é tema para uma história de amor, mas para farsa ou vaudeville -às vezes, para conto de terror, à la “Dormindo com o Inimigo”.
Durante décadas, Calvin Trillin * escreveu uma narrativa de sua vida de casal, na revista “New Yorker” e em alguns livros (por exemplo, “Travels with Alice”, viajando com Alice, de 1989, e “Alice, Let’s Eat”, Alice, vamos para a mesa, de 1978). Nesses escritos, que são só uma parte de sua produção, Trillin compunha com sua mulher, Alice, uma dobradinha humorística, em que Calvin era o avoado, o feio e o desajeitado, e Alice encarnava, ao mesmo tempo, a beleza, a graça e a sabedoria concreta de vida.
À primeira vista, isso confirma a regra: a vida de casal é um tema cômico. Mas as crônicas de Trillin eram delicadas e tocantes: engraçadas, mas nunca grotescas. Trillin não zombava da dificuldade da vida de casal: ele nos divertia celebrando a alegria do casamento. Qual era seu segredo? Pois bem, Alice, com quem Trillin se casou em 1965, morreu em 2001.
Trillin escreveu “Sobre Alice”, que acaba de ser publicado pela Globo. Esse pequeno e tocante texto de despedida desvenda o segredo de um amor e de uma convivência felizes, que duraram 35 anos. O segredo é o seguinte: Calvin e Alice, as personagens das crônicas, não eram artifícios literários, eram os próprios. A oposição entre os dois foi, efetivamente, o jeito especial que eles inventaram para conviver e prolongar o amor na convivência.
Considere esta citação de um texto anterior, que aparece no começo de “Sobre Alice”: “Minha mulher, Alice, tem a estranha propensão de limitar nossa família a três refeições por dia”. A graça está no fato de que a “propensão” de Alice não é extravagante, mas é contemplada por Calvin como se fosse um hábito exótico.
Alice é situada e mantida numa alteridade rigorosa, em que é impossível distinguir qualidades e defeitos: Calvin a ama e admira como a gente contempla, fascinado, uma espécie desconhecida num documentário do Discovery Channel. Se amo e admiro o outro por ele ser diferente de mim (e não apesar de ele ser diferente de mim), não posso considerar que minha maneira de ser seja a única certa. Se Calvin acha extraordinário que Alice acredite na virtude de três refeições diárias, ele pode continuar petiscando o dia todo, mas seu hábito lhe parecerá, no fundo, tão estranho quanto o de Alice.
Com isso, Calvin e Alice transformaram sua vida de casal numa aventura fascinante: a aventura de sempre descobrir o outro, cuja diferença inesperada nos dá, de brinde, a certeza de que nossa obstinada maneira de ser, nossos jeitos e nossa neurose não precisam ser uma norma universal, nem mesmo a norma do casal. Há quem diga que o parceiro ideal é aquele que nos faz rir. Trillin completou a fórmula: Alice era quem conseguia fazê-lo rir dele mesmo. Com isso, ele descobriu a receita do amor que dura.

5 de abr. de 2015

Oração aos vivos para que sejam perdoados por estarem vivos :: Charlotte Delbo


                                                                                                                    Edward Burne-Jones
Eu suplico-vos
fazei qualquer coisa
aprendei um passo
uma dança
alguma coisa que vos justifique
que vos dê o direito
de vestir a vossa pele o vosso pêlo
aprendei a andar e a rir
porque será completamente estúpido
no fim
que tantos tenham sido mortos
e que vós viveis
sem nada fazer da vossa vida.

Tradução: Luís Filipe Parrado

24 de mar. de 2015

A Irmã Que Nunca Tive :: Célia Gil

Nicolae Tonitza, 1927

Hoje preciso desabafar contigo,
irmã que nunca tive.
Quero pegar-te na mão,
contar-te como me sinto.
E tu, irmã sonhada,
ficarás acordada
apenas para me ouvir.
Ouvir-me-as pacientemente,
sorrir-me-as docemente,
saberás exactamente o que sinto.
Riremos juntas
dos momentos que não tivemos,
partilharemos juntas
os momentos que não vivemos.
E eu nunca mais estarei só.
Já velhinhas,
continuaremos unidas
em histórias fingidas,
por nós ficcionadas,
irmãs, amigas, conhecidas!

5 de dez. de 2014

Idea Vilariño: "Tudo é tão simples"

Tudo é tão simples muito
mais simples e no entanto
'inda assim há momentos
em que é demasiado para mim
em que não entendo
e não sei se sorrir com gargalhadas
ou se chorar de medo
ou estar aqui sem pranto
sem risos
em silêncio
assumindo minha vida
meu trânsito
meu tempo.

Tradução de Adriano Nunes
:::::::::::::::::::::;
Todo es muy simple mucho
más simple y sin embargo
aun así hay momentos
en que es demasiado para mí
en que no entiendo
y no sé si reírme a carcajadas
o si llorar de miedo
o estarme aqui sin llanto
sin risas
en silencio
asumiendo mi vida
mi tránsito
mi tiempo.



VILARIÑO, Idea. Poesía Completa. Montevideo: Cal y Canto, 2012, p. 118.

20 de mar. de 2014

Os mortos de Ferreira Gullar


Balthus

os mortos vêem o mundo
pelos olhos dos vivos

eventualmente ouvem,
com nossos ouvidos,
certas sinfonias
algum bater de portas,
ventanias

Ausentes
de corpo e alma
misturam o seu ao nosso riso
se de fato
quando vivos
acharam a mesma graça


De Muitas Vozes (1999)

2 de jan. de 2014

O pão de Rui Costa


Há pessoas que amam
Com os dedos todos sobre a mesa.
Aquecem o pão com o suor do rosto
E quando as perdemos estão sempre
Ao nosso lado.
Por enquanto não nos tocam:
A lua encontra o pão caiado que comemos
Enquanto o riso das promessas destila
Na solidão da erva.
Estas pessoas são o chão
Onde erguemos o sol que nos falhou os dedos
E pôs um fruto negro no lugar do coração.
Estas pessoas são o chão
Que não precisa de voar.

a nuvem prateada das pessoas graves. quasi, 2005

18 de dez. de 2013

À beira do mar :: Pablo Neruda



À beira do mar, no outono,
teu riso deve erguer
sua cascata de espuma,
e na primavera , amor,
quero teu riso como
a flor que esperava,
a flor azul, a rosa
da minha pátria sonora.

29 de abr. de 2013

O riso é perigoso de Fabrício Carpinejar

Clarice Lispector beliscava sua amiga Lygia Fagundes Telles quando entravam juntas num encontro literário:

– Não ri, vai! Séria, cara de viúva.
– Por quê? – perguntava Lygia.
– Para que valorizem o nosso trabalho.
Não há mesmo imagem de alguma risada da escritora Clarice Lispector. Em livros e revistas, a cena que persiste é seu olhar desafiador, emoldurado por um rosto anguloso, compenetrado e enigmático. Os lábios não se mexem, absolutamente contraídos, envelopes fechados para a posteridade.
Lispector não mostrava suas obturações, sua arcada para ninguém. Não se permitia gargalhadas para não parecer mulher superficial e leviana.
Ela percebeu que existe um imenso preconceito contra a alegria. Os críticos não a levariam a sério, dizendo que ela não era densa, não inspirava profundidade; acabariam por sobrepor a aparência faceira aos questionamentos metafísicos de sua obra.
Seu medo não era bobo. O riso permanece perigoso. Todos temem os contentes. Falam mal dos contentes.
O riso gera inveja, ciúme, intriga: “Por que está feliz, e eu não?”.
A alegria é malvista em casa e no trabalho, sempre intrusa, sempre suspeita equivocada de uma ironia ou de um sentimento de superioridade.
Ainda acreditamos que profissionalismo é feição fechada, casmurra. Ainda deduzimos que competência é baixar a cabeça e não entregar nossas emoções.
Quanto mais triste, mais confiável. Quanto mais calado, mais concentrado. O que é um tremendo engano.
A criatividade chama a brincadeira, assim como a risada renova a disposição.
Se um funcionário ri no ambiente profissional, o chefe deduz que ele está vadiando, sem nada para fazer. Poderá receber reprimenda pública e o dobro de tarefas. Quem diz que ele não está somente satisfeito com os resultados?
Se sua companhia ri durante a transa, você conclui que está debochando do seu desempenho. Quem diz que não é o contrário, que ela não festeja o próprio prazer?
Se a criança ri no meio da aula, o professor compreende como provocação e pede para que cale a boca. Quem diz que ela não está comemorando algum aprendizado tardio?
Se o filho ri quando os pais descrevem dificuldades profissionais, a atitude é reduzida a um grave desrespeito. Quem diz que ele não achou graça do tom repetitivo das histórias?
Se a esposa ou marido ri e suspira à toa, já tememos infidelidade.
O riso é escravo dos costumes, sinônimo de futilidade e distração quando deveria ser visto como sinal de maturidade e envolvimento afetivo.
Não reagimos bem à felicidade do outro simplesmente porque ela ameaça nossa tristeza.


1 de fev. de 2013

Sempre de Chico Buarque

Eu te contemplava sempre
Feito um gato aos pés da dona
Mesmo em sonho estive atento
Para poder lembrar-te sempre
Como olhando o firmamento
Vejo estrelas que já foram
Noite afora para sempre

O teu corpo em movimento
Os teus lábios em flagrante
O teu riso, o teu silêncio
Serão meus ainda e sempre

Dura a vida alguns instantes
Porém mais do que bastantes
Quando cada instante é sempre

http://www.youtube.com/watch?v=OhIB-vYy_Qw

30 de jan. de 2013

Para Maria da Graça – Paulo Mendes Campos


Agora, que chegaste à idade avançada de 15 anos, Maria da Graça, eu te dou este livro: Alice no País das Maravilhas.
Este livro é doido, Maria. Isto é: o sentido dele está em ti.
Escuta: se não descobrires um sentido na loucura acabarás louca. Aprende, pois, logo de saída para a grande vida, a ler este livro como um simples manual do sentido evidente de todas as coisas, inclusive as loucas. Aprende isso a teu modo, pois te dou apenas umas poucas chaves entre milhares que abrem as portas da realidade. A realidade, Maria, é louca.
Nem o Papa, ninguém no mundo, pode responder sem pestanejar à pergunta que Alice faz à gatinha: “Fala a verdade Dinah, já comeste um morcego?
Não te espantes quando o mundo amanhecer irreconhecível. Para melhor ou pior, isso acontece muitas vezes por ano. “Quem sou eu no mundo?” Essa indagação perplexa é lugar-comum de cada história de gente. Quantas vezes mais decifrares essa charada, tão entranhada em ti mesma como os teus ossos, mais forte ficarás. Não importa qual seja a resposta; o importante é dar ou inventar uma resposta. Ainda que seja mentira.
A sozinhez (esquece essa palavra que inventei agora sem querer) é inevitável. Foi o que Alice falou no fundo do poço: “Estou tão cansada de estar aqui sozinha!” O importante é que ela conseguiu sair de lá, abrindo a porta. A porta do poço! Só as criaturas humanas (nem mesmo os grandes macacos e os cães amestrados) conseguem abrir uma porta bem fechada ou vice-versa, isto é, fechar uma porta bem aberta.
Somos todos tão bobos, Maria. Praticamos uma ação trivial, e temos a presunção petulante de esperar dela grandes conseqüências. Quando Alice comeu o bolo e não cresceu de tamanho, ficou no maior dos espantos. Apesar de ser isso o que acontece, geralmente, às pessoas que comem bolo.
Maria, há uma sabedoria social ou de bolso; nem toda sabedoria tem de ser grave.
A gente vive errando em relação ao próximo e o jeito é pedir desculpas sete vezes por dia: “Oh, I beg your pardon” Pois viver é falar de corda em casa de enforcado. Por isso te digo, para tua sabedoria de bolso: se gostas de gato, experimenta o ponto de vista do rato. Foi o que o rato perguntou à Alice: “Gostarias de gato se fosses eu?”
Os homens vivem apostando corrida, Maria. Nos escritórios, nos negócios, na política, nacional e internacional, nos clubes, nos bares, nas artes, na literatura, até amigos, até irmãos, até marido e mulher, até namorados todos vivem apostando corrida. São competições tão confusas, tão cheias de truques, tão desnecessárias, tão fingindo que não é, tão ridículas muitas vezes, por caminhos tão escondidos, que, quando os atletas chegam exaustos a um ponto, costumam perguntar: “A corrida terminou! mas quem ganhou?” É bobice, Maria da Graça, disputar uma corrida se a gente não irá saber quem venceu. Se tiveres de ir a algum lugar, não te preocupe a vaidade fatigante de ser a primeira a chegar. Se chegares sempre onde quiseres, ganhaste.
Disse o ratinho: “A minha história é longa e triste!” Ouvirás isso milhares de vezes. Como ouvirás a terrível variante: “Minha vida daria um romance”. Ora, como todas as vidas vividas até o fim são longas e tristes, e como todas as vidas dariam romances, pois o romance só é o jeito de contar uma vida, foge, polida mas energeticamente, dos homens e das mulheres que suspiram e dizem: “Minha vida daria um romance!” Sobretudo dos homens. Uns chatos irremediáveis, Maria.
Os milagres sempre acontecem na vida de cada um e na vida de todos. Mas, ao contrário do que se pensa, os melhores e mais fundos milagres não acontecem de repente, mas devagar, muito devagar. Quero dizer o seguinte: a palavra depressão cairá de moda mais cedo ou mais tarde. Como talvez seja mais tarde, prepara-te para a visita do monstro, e não te desesperes ao triste pensamento de Alice: “Devo estar diminuindo de novo” Em algum lugar há cogumelos que nos fazem crescer novamente.
E escuta a parábola perfeita: Alice tinha diminuído tanto de tamanho que tomou um camundongo por um hipopótamo. Isso acontece muito, Mariazinha. Mas não sejamos ingênuos, pois o contrário também acontece. E é um outro escritor inglês que nos fala mais ou menos assim: o camundongo que expulsamos ontem passou a ser hoje um terrível rinoceronte. É isso mesmo. A alma da gente é uma máquina complicada que produz durante a vida uma quantidade imensa de camundongos que parecem hipopótamos e rinocerontes que parecem camundongos. O jeito é rir no caso da primeira confusão e ficar bem disposto para enfrentar o rinoceronte que entrou em nossos domínios disfarçado de camundongo. E como tomar o pequeno por grande e grande por pequeno é sempre meio cômico, nunca devemos perder o bom-humor. Toda a pessoa deve ter três caixas para guardar humor: uma caixa grande para o humor mais ou menos barato que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa média para o humor que a gente precisa ter quando está sozinho, para perdoares a ti mesma, para rires de ti mesma; por fim, uma caixinha preciosa, muito escondida, para grandes ocasiões. Chamo de grandes ocasiões os momentos perigosos em que estamos cheios de dor ou de vaidade, em que sofremos a tentação de achar que fracassamos ou triunfamos, em que nos sentimos umas drogas ou muito bacanas. Cuidado, Maria, com as grandes ocasiões.
Por fim, mais uma palavra de bolso: às vezes uma pessoa se abandona de tal forma ao sofrimento, com uma tal complacência, que tem medo de não poder sair de lá. A dor também tem o seu feitiço, e este se vira contra o enfeitiçado. Por isso Alice, depois de ter chorado um lago, pensava: “Agora serei castigada, afogando-me em minhas próprias lágrimas”.
Conclusão: a própria dor deve ter a sua medida: É feio, é imodesto, é vão, é perigoso ultrapassar a fronteira de nossa dor, Maria da Graça.
fonte: Primeiras leituras: crônicas.  Boa Companhia, 2012 

9 de jun. de 2012

A criança que ri na rua de Fernando Pessoa


A criança que ri na rua,
A música que vem no acaso,
A tela absurda, a estátua nua,
A bondade que não tem prazo —

Tudo isso excede este rigor 
Que o raciocínio dá a tudo, 
E tem qualquer coisa de amor, 
Ainda que o amor seja mudo. 

Poesias Inéditas (1930-1935).  Lisboa: Ática, 1955

13 de mai. de 2012

A minha filha junto de mim de Débora Siqueira Bueno

Jessie Willcox Smith

Para Lígia, que comigo escreveu esse poema.


A minha filha junto de mim lê os meus sonhos.
Tento evitá-lo –
aquilo não é coisa pra criança.
Insiste.
– Credo, mãe! Isso não é sonho, é pesadelo!
Senta-se e escreve em meu lugar –
A minha filha junto de mim.
Me junta a mim, a desjuntada,
me aconchega
e nina o desânimo em que me encontro.
Espanta o siso e abre o riso e fecho o livro
de onde brotam tais palavras mal escritas.
A minha filha junto de mim me traz de volta
ao mundo vivo em que pertenço a alguém
que me pertence e me escreve – filha.
Palavra forte.
Inscreve – mãe –
me faz alguém.
A minha filha junto de mim sonha seus sonhos
e abre o livro vivo que há em mim.

7 de abr. de 2007

Carta de Frida Kahlo a Diego


Carta de Frida Kahlo a Diego

Querido Diego,

A grande verdade é que já não quisera nem falar, nem dormir, nem ouvir, nem querer. Sentir-me encerrada, sem medo do sangue, sem tempo nem magia, dentro de teu mesmo medo e dentro de tua grande angústia e na mesma batida do teu coração. Toda esta loucura, se te pedisse, já seria para teu silêncio somente confusão. Te peço violência na irracionalidade e tu me dás graças, tua luz e calor. Pintar-te quisera, porém não há cores, por havê-las tantas, em minha confusão, a forma concreta do meu grande amor.

O que os meus olhos vêem e que toco comigo mesma, desde todas as distâncias é Diego. A carícia das telas, a cor do calor, os arames, os nervos, os lápis, as células e o sol, tudo o que se vive nos minutos dos não-relógios, dos não-calendários e dos não olhares vazios, é ele, Diego…
Tu te chamarás Auxocromo, o que capta a cor, eu, Cromoforo, o que dá a cor. Tu és todas as combinações, todos os números. És a vida. Meu desejo é entender a linha, a forma, a sombra, o movimento. Tu transbordas e eu recebo. Tua palavra percorre o espaço e chega às minhas células, são meus astros que vão aos teus astros, que são a minha luz…
Ninguém saberá jamais como quero a Diego. Não quero que nada o machuque, que nada o moleste ou lhe tire a energia que ele necessita para viver. Viver da maneira como ele quiser. Pintar, ver, amar, comer, dormir, sentir-se sozinho, sentir-se acompanhado, porém nunca quisera que estivesse triste. Se eu tivesse saúde, quisera dá-la toda, se eu tivesse juventude, toda ela poderia tomar. Não sou louca, mãe, sou embrião, gérmen, a primeira céluda que, potencialmente, o gerou.
Sou ele desde as mais primitivas…e as mais antigas células que com o tempo se tornaram ele.
Se tão somente tivesse a meu lado tua carícia, como à terra o ar se lhe dá, a realidade de tua pessoa me faria mais alegre, me afastaria do sentimento que me enche de cinza. Nada já seria em mim tão fundo, tão final. Porém, como lhe explico minha necessidade enorme de ternura…minha solidão de anos…minha estrutura disforme por ser sem harmonia, por ser inadaptada. Eu creio que é melhor ir-me…ir-me…que tudo passe num instante…oxalá!


Nunca vi ternura maior do que a que Diego tem e quando suas maõs e seus belos olhos tocam as esculturas do México índio.
Nada comparável às tuas mãos nem nada igual ao ouro verde de teus olhos. Meu corpo se enche de ti por dias e dias. És o espelho da noite, a luz violeta do relâmpago, a umidade da terra. O côncavo de tuas axilas é meu refúgio. Minhas gemas tocam teu sangue. Toda minha alegria é sentir brotar tua vida de tua fonte-flor, que a minha guarda para encher todos os caminhos de meus nervos, que são os teus.
Afortunadamente, as palavras se foram fazendo…O que lhes deu a “verdade” absoluta? Nada é absoluto. Tudo se altera, tudo se move, tudo revoluciona – tudo volta e se vai…
Criança minha – da grande ocultadora. São seis horas da manhã e os guajulotes cantam, calor de humana ternura. Solidão acompanhada. Jamais, em toda a minha vida, esquecerei de tua presença. Me acolhestes destroçada e me devolvestes inteira. Nesta pequena terra, onde porei o olhar? Tão imensa, tão profunfa! Já não há tempo, já não há nada, distância.

Há somente realidade. O que se foi, foi para sempre! O que é, são as raizes que se assomam transparentes, transformadas. A árvore frutífera inteira. Teus frutos já dão seus aromas, tuas flores dão cor crescendo com a alegria do vento e da flor. Nome de Diego – nome de amor. Não deixeis que dê sede à árvore que tanto te amou, que guardou tua semente, que cristalizou tua vida às seis da manhã. Não deixeis que dê sede à árvore da qual és sol. És Diego, nome de amor. Não vale mais do que o riso.
É necessário rir e abandonar-se, ser ligeiro. A tragédia é o mais ridículo que tem o homem. Estou certa que os animais ainda que sofram não exibem suas penas em “teatros” abertos nem fechados (“os lares”). Sua dor é mais certa do que qualquer imagem que possa cada homem representar como dolorosa. Eu quisera poder ser o que quisesse – atrás da cortina da loucura, arranjaria as flores, todo o dia, pintaria a dor, o amor e a ternura, riria da estupidez dos outros e todos rirão: pobre, está louca! (Sobretudo riria da minha estupidez.)

Construiria meu mundo e enquanto vivesse estaria de acordo com todos os mundos. O dia ou a hora e o minuto que vivesse, seriam meus e de todos. Minha loucura não seria um escape do trabalho para que me mantiveram com seu labor.
A revolução é a harmonia da forma e da cor e tudo está e se move sob uma única lei: a vida. Ninguém se aparta de ninguém. Ninguém luta por si mesmo. Tudo é tudo e um. A angústia e a dor e o prazer e a morte não são mais que um processo para existir. A luta revolucionária neste processo é a porta aberta à inteligência. Diego, estou só. Diego, já não estou só. Tu me acompanhas, tu me adormeces, tu me animas. Árvore da esperança, mantenha-se firme…árvore da esperança, mantenha-se firme.
Ninguém é mais que um funcionamento ou uma função total. A vida passa e dá caminhos que não se percorrem em vão. Porém, ninguém pode deter-se livremente a brincar pelo caminho, porque retarda ou transforma a viagem atômica e geral. Dali vem o descontentamento, a desesperança, a tristeza.

Todos queríamos a soma e não o elemento número. As mudanças e a luta nos desconcertam, nos aterram por constantes e por certos, buscamos a calma e a “paz” porque nos antecipamos à morte, que morremos a cada segundo. Os opostos que se unem e nada novo nem arrítimico descobrimos. Nos amparamos, nos alarmamos no irracional, no mágico, no anormal, por medo da extraordinária beleza do certo, do material e do dialético, do são e forte.
Gostamos de ser enfermos para nos protegermos. Alguém – algo – nos protege sempre da verdade – nossa própria ignorância e nosso medo. Medo de tudo: medo de saber que não somos outra coisa que vetores – direção, construção e destruição para sermos vivos e sentirmos a angústia de esperar pelo minuto seguinte e participar na corrente completa de não saber que nos dirigimos a nós mesmos.
Variedade de pedras, de seres-aves, de seres-astros, de seres-micróbios, de seres-fontes, a nós mesmos. Variedade de um, incapacidade de escapar a dois, a três, o et cétera de sempre para regressar ao um. Porém, não a soma (chamada às vezes Deus, às vezes liberdade, às vezes amor).
Não somos ódio-amor-filho-planta-terra-luz-raio. et cétera de sempre. Mundana dor dos mundos, universos e células-universos. Tudo é tudo e um. A angústia e a dor, o prazer e a morte não são mais que um processo para existir.
Me amputaram a perna há seis meses, pareceram-me séculos de tortura e em momentos quase perdi a “razão”. Sigo sentindo vontade de suicidar-me. Diego é ele que me detém por crer que lhe possa fazer falta. Ele me disse e eu creio. Porém, nunca na vida sofri mais. Esperarei um tempo…espero alegre a saída e espero não voltar jamais.

Frida Kahlo

João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)