7 de abr. de 2007

Carta de Frida Kahlo a Diego


Carta de Frida Kahlo a Diego

Querido Diego,

A grande verdade é que já não quisera nem falar, nem dormir, nem ouvir, nem querer. Sentir-me encerrada, sem medo do sangue, sem tempo nem magia, dentro de teu mesmo medo e dentro de tua grande angústia e na mesma batida do teu coração. Toda esta loucura, se te pedisse, já seria para teu silêncio somente confusão. Te peço violência na irracionalidade e tu me dás graças, tua luz e calor. Pintar-te quisera, porém não há cores, por havê-las tantas, em minha confusão, a forma concreta do meu grande amor.

O que os meus olhos vêem e que toco comigo mesma, desde todas as distâncias é Diego. A carícia das telas, a cor do calor, os arames, os nervos, os lápis, as células e o sol, tudo o que se vive nos minutos dos não-relógios, dos não-calendários e dos não olhares vazios, é ele, Diego…
Tu te chamarás Auxocromo, o que capta a cor, eu, Cromoforo, o que dá a cor. Tu és todas as combinações, todos os números. És a vida. Meu desejo é entender a linha, a forma, a sombra, o movimento. Tu transbordas e eu recebo. Tua palavra percorre o espaço e chega às minhas células, são meus astros que vão aos teus astros, que são a minha luz…
Ninguém saberá jamais como quero a Diego. Não quero que nada o machuque, que nada o moleste ou lhe tire a energia que ele necessita para viver. Viver da maneira como ele quiser. Pintar, ver, amar, comer, dormir, sentir-se sozinho, sentir-se acompanhado, porém nunca quisera que estivesse triste. Se eu tivesse saúde, quisera dá-la toda, se eu tivesse juventude, toda ela poderia tomar. Não sou louca, mãe, sou embrião, gérmen, a primeira céluda que, potencialmente, o gerou.
Sou ele desde as mais primitivas…e as mais antigas células que com o tempo se tornaram ele.
Se tão somente tivesse a meu lado tua carícia, como à terra o ar se lhe dá, a realidade de tua pessoa me faria mais alegre, me afastaria do sentimento que me enche de cinza. Nada já seria em mim tão fundo, tão final. Porém, como lhe explico minha necessidade enorme de ternura…minha solidão de anos…minha estrutura disforme por ser sem harmonia, por ser inadaptada. Eu creio que é melhor ir-me…ir-me…que tudo passe num instante…oxalá!


Nunca vi ternura maior do que a que Diego tem e quando suas maõs e seus belos olhos tocam as esculturas do México índio.
Nada comparável às tuas mãos nem nada igual ao ouro verde de teus olhos. Meu corpo se enche de ti por dias e dias. És o espelho da noite, a luz violeta do relâmpago, a umidade da terra. O côncavo de tuas axilas é meu refúgio. Minhas gemas tocam teu sangue. Toda minha alegria é sentir brotar tua vida de tua fonte-flor, que a minha guarda para encher todos os caminhos de meus nervos, que são os teus.
Afortunadamente, as palavras se foram fazendo…O que lhes deu a “verdade” absoluta? Nada é absoluto. Tudo se altera, tudo se move, tudo revoluciona – tudo volta e se vai…
Criança minha – da grande ocultadora. São seis horas da manhã e os guajulotes cantam, calor de humana ternura. Solidão acompanhada. Jamais, em toda a minha vida, esquecerei de tua presença. Me acolhestes destroçada e me devolvestes inteira. Nesta pequena terra, onde porei o olhar? Tão imensa, tão profunfa! Já não há tempo, já não há nada, distância.

Há somente realidade. O que se foi, foi para sempre! O que é, são as raizes que se assomam transparentes, transformadas. A árvore frutífera inteira. Teus frutos já dão seus aromas, tuas flores dão cor crescendo com a alegria do vento e da flor. Nome de Diego – nome de amor. Não deixeis que dê sede à árvore que tanto te amou, que guardou tua semente, que cristalizou tua vida às seis da manhã. Não deixeis que dê sede à árvore da qual és sol. És Diego, nome de amor. Não vale mais do que o riso.
É necessário rir e abandonar-se, ser ligeiro. A tragédia é o mais ridículo que tem o homem. Estou certa que os animais ainda que sofram não exibem suas penas em “teatros” abertos nem fechados (“os lares”). Sua dor é mais certa do que qualquer imagem que possa cada homem representar como dolorosa. Eu quisera poder ser o que quisesse – atrás da cortina da loucura, arranjaria as flores, todo o dia, pintaria a dor, o amor e a ternura, riria da estupidez dos outros e todos rirão: pobre, está louca! (Sobretudo riria da minha estupidez.)

Construiria meu mundo e enquanto vivesse estaria de acordo com todos os mundos. O dia ou a hora e o minuto que vivesse, seriam meus e de todos. Minha loucura não seria um escape do trabalho para que me mantiveram com seu labor.
A revolução é a harmonia da forma e da cor e tudo está e se move sob uma única lei: a vida. Ninguém se aparta de ninguém. Ninguém luta por si mesmo. Tudo é tudo e um. A angústia e a dor e o prazer e a morte não são mais que um processo para existir. A luta revolucionária neste processo é a porta aberta à inteligência. Diego, estou só. Diego, já não estou só. Tu me acompanhas, tu me adormeces, tu me animas. Árvore da esperança, mantenha-se firme…árvore da esperança, mantenha-se firme.
Ninguém é mais que um funcionamento ou uma função total. A vida passa e dá caminhos que não se percorrem em vão. Porém, ninguém pode deter-se livremente a brincar pelo caminho, porque retarda ou transforma a viagem atômica e geral. Dali vem o descontentamento, a desesperança, a tristeza.

Todos queríamos a soma e não o elemento número. As mudanças e a luta nos desconcertam, nos aterram por constantes e por certos, buscamos a calma e a “paz” porque nos antecipamos à morte, que morremos a cada segundo. Os opostos que se unem e nada novo nem arrítimico descobrimos. Nos amparamos, nos alarmamos no irracional, no mágico, no anormal, por medo da extraordinária beleza do certo, do material e do dialético, do são e forte.
Gostamos de ser enfermos para nos protegermos. Alguém – algo – nos protege sempre da verdade – nossa própria ignorância e nosso medo. Medo de tudo: medo de saber que não somos outra coisa que vetores – direção, construção e destruição para sermos vivos e sentirmos a angústia de esperar pelo minuto seguinte e participar na corrente completa de não saber que nos dirigimos a nós mesmos.
Variedade de pedras, de seres-aves, de seres-astros, de seres-micróbios, de seres-fontes, a nós mesmos. Variedade de um, incapacidade de escapar a dois, a três, o et cétera de sempre para regressar ao um. Porém, não a soma (chamada às vezes Deus, às vezes liberdade, às vezes amor).
Não somos ódio-amor-filho-planta-terra-luz-raio. et cétera de sempre. Mundana dor dos mundos, universos e células-universos. Tudo é tudo e um. A angústia e a dor, o prazer e a morte não são mais que um processo para existir.
Me amputaram a perna há seis meses, pareceram-me séculos de tortura e em momentos quase perdi a “razão”. Sigo sentindo vontade de suicidar-me. Diego é ele que me detém por crer que lhe possa fazer falta. Ele me disse e eu creio. Porém, nunca na vida sofri mais. Esperarei um tempo…espero alegre a saída e espero não voltar jamais.

Frida Kahlo

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