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6 de out. de 2015

CARTA PARA JOSEFA, MINHA AVÓ :: JOSÉ SARAMAGO

Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo e eu acredito. Não sabes ler. Tens as mãos grossas e deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água. Viste nascer o sol todos os dias. De todo o pão que amassaste se faria um banquete universal. Criaste pessoas e gado, meteste os bácoros na tua própria cama quando o frio ameaçava gelá-los. Contaste-me histórias de aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime de morte. Trave da tua casa, lume da tua lareira, sete vezes engravidaste, sete vezes deste à luz.

Não sabes nada do mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de literatura, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de palavras práticas, um vocabulário elementar. Com isto viveste e vais vivendo.

És sensível às catástrofes e também aos casos de rua, aos casamentos de princesas e ao roubo dos coelhos da vizinha. Tens grandes ódios por motivos de que já perdeste a lembrança, grandes dedicações que assentam em coisa nenhuma. Vives. Para ti, a palavra Vietname é apenas um som bárbaro que não condiz com o teu círculo de légua e meia de raio. Da fome sabes alguma coisa: já viste uma bandeira negra içada na torre da igreja. (Contaste-me tu, ou terei sonhado que o contavas?) Transportas contigo o teu pequeno casulo de interesses. E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. O teu riso é como um foguete de cores. Como tu, não vi rir ninguém.

Estou diante de ti, e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo. Vieste a este mundo e não curaste de saber o que é o mundo. Chegas ao fim da vida, e o mundo ainda é, para ti, o que era quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não faz parte da tua herança: quinhentas palavras, um quintal a que em cinco minutos se dá a volta, uma casa de telha-vã e chão de barro. Aperto a tua mão calosa, passo a minha mão pela tua face enrijada e pelos teus cabelos brancos, partidos pelo peso dos carregos e continuo a não entender. Foste bela, dizes, e bem vejo que és inteligente. Por que foi então que te roubaram o mundo? Mas disto talvez entenda eu, e dir-te-ia o como, o porquê e o quando se soubesse escolher das minhas inumeráveis palavras as que tu pudesses compreender. Já não vale a pena. O mundo continuará sem ti e sem mim. Não teremos dito um ao outro o que mais importava.

Não teremos realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas palavras não são as tuas, o mundo que te era devido. Fico com esta culpa de que me não acusas e isso ainda é pior. Mas porquê, avó, porque te sentas tu na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e dizes, com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida: O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!

É isto que eu não entendo, mas a culpa não é tua.

Carta para Josefa, minha avó, publicada por José Saramago, em 14 de Março de 1968, no jornal lisboeta A Capital.


19 de jul. de 2012

Solidão: a crônica sem destino de Roberto da Matta


A solidão tem muito com a vida e muito com a morte. Os mortos estão sós e são abandonados. Devem estar dormindo profundamente, como disse Manuel Bandeira. Por algum tempo eles detêm toda a nossa atenção, mas são em seguida abandonados. E esquecidos.
São entregues, sob o brilho das nossas lágrimas, a si mesmos e ao cosmos cuja totalidade não temos condições de abranger. Ao nos aproximarmos deles desmentimos radicalmente a boutade segundo a qual "de perto ninguém é normal", porque eles não são mais ninguém e são agora de todos. Viram memórias, tornam-se lembranças e saudade. Saudades cheias de luz. Uma luz fugidia e opaca. Todos os segundos e dias de suas vidas são especiais, como disse o Thornton Wilder de "Nossa cidade". Sua normalidade impressiona pelo silêncio e pela mais completa perfeição. O sono profundo é um pedaço do seu mistério.
Aliás, não há condenação mais ambígua do que a morte, exceto o exílio (ou a morte social), que, como revelou o magnífico historiador Fustel de Coulanges, era pior do que a morte entre os antigos romanos. E talvez seja assim entre nós, igualmente romanos quando damos mais importância às relações do que às pessoas, e não o contrário.
Entre os fatos maiores da morte e, para além dela, do morto amado que leva um pedaço do nosso coração senão toda a nossa alma ou uma de nossas pernas, jaz um mistério: para onde foi aquela vitalidade que tem como centro a necessidade de falar, trocar, cantar, escrever, construir e comunicar? De dizer como foi, como acontece nas grandes aventuras, experiências e viagens? Como é horrível para nós, vivos e predestinados a ser, um dia, esse morto, o mutismo inviolável dessa experiência que transforma a pessoa em mais uma estrela.
Espantoso como a morte — a mais importante experiência humana — seja, por isso mesmo, a única que jamais pode ser socialmente compartilhada. Dai a sua tremenda negação em toda as culturas e sociedades, em todas as crenças e ideologias.
"Força", dizem os amigos nos olhando de esguelha e já pedindo licença para sair de perto. "Foi desta para melhor", dizem outros consolando e negando veementemente o fato de que estamos todos condenados a algo pior do que o inferno, pois sofremos sem saber por que. Temos uma descabida consciência das ferramentas do sofrimento — rejeição, injustiça, ódio, descaso, inveja, esquecimento, para não falar das mais variadas formas de doença, agressão e acidentes em suas mais temíveis combinações —, mas não nos é dado conhecer os fins. As causas e os motivos que levaram de nossa humilde esfera de vida um ente querido que, afinal de contas, importava mais para nós do que para todos os outros. Essa pessoa que tinha mais valor do que todas as barras de ouro e era mais amada do que todos os poderosos somados juntos. Assaltados, como a bíblica caravana, por ladrões infames e jamais detidos como o mal de Parkinson, o de Alzheimer e outras enfermidades cujo nome grandioso é sinal de sofrimentos inenarráveis, nos deparamos com a inconsistência entre o poder da doença e a fragilidade do doente tão tímido, tão pequenino, tão sereno, tão celestial na sua banal, frágil e corajosa inocência humana e o pomposo e estranho nome do funesto atacante. Espantoso descobrir alguém que compartilha de nossa vida, tendo a sua vida afligida por essas doenças impronunciáveis.
A solidão tem um sintoma trivial. Você é testemunho do seu próprio choro e não deseja (porque não precisa) que ninguém lhe veja chorando. O choro do amor é para o outro — quem quer que seja esse outro. O choro da solidão é para dentro e para esse outro que vive em você. É a prova de que somos muitos e que o tão desdenhado corpo é quem tem o duro papel de juntar em si todos esses atores. Temos muitos demônios e anjos interiores, mas um só palco e um só cenário dentro do qual eles podem se manifestar. Na pior situação, o corpo deve surgir uniformizado. Com as emoções mais dispares devidamente orquestradas e reveladas (ou não) por um corpo que é instrumento, ator e palco de tudo que passamos. A alma em frangalhos, o corpo sereno. Ajoelhado, como manda o figurino cristão. Ou o corpo em frangalhos e a alma serena no seu perpetuo dialogo com todos os seus demônios.
Outro dado estranho da solidão é não se sentir sozinho. Parece paradoxal, mas não é. Um torcedor do Fluminense no meio da torcida do Flamengo é a pessoa mais solitária do universo. Se o diálogo que você tem com os seus outros for positivo; se você fala com todas essas estranhas criaturas que estão dentro de você, inclusive e sobretudo com os seus mortos e doentes, a solidão lhe trás uma estranha paz. A paz de Deus é a melhor metáfora para esse sentimento que chega com a vida na sua plenitude. Numa conversa franca com você mesmo como bandido, como covarde, como ignorante, como invejoso, como sovina, como boquirroto, e como renegado. Você apara suas arestas, acerta suas contas e entra em contato com aquela outra letra que segue o "A" (do amor) e o "B" (da bênção). Refiro-me ao "C" que escreve coração e compaixão. Porque sem compaixão, amigos, não há serenidade nem só nem acompanhado. Amém.

28 de fev. de 2012

Investigações de um cão de Franz Kafka


Andrew Wyeth 
Todo o conhecimento, a totalidade de todas as perguntas e respostas, está contida no cão.

As minhas interrogações servem apenas de aguilhão para mim mesmo. Só quero ser estimulado pelo silêncio que se ergue à minha volta como resposta derradeira. «Até quando conseguirás suportar o facto de que o mundo dos cães, tal como demonstram cada vez com mais evidência as tuas pesquisas, está para sempre votado ao silêncio? Até quando conseguirás suportar esta ideia?» Esta, esta é que é a verdadeira grande interrogação da minha vida, uma interrogação perante a qual as outras interrogações se tornam totalmente insignificantes. Uma interrogação que diz respeito apenas a nós próprios e a mais ninguém. Infelizmente, posso responder a esta interrogação com mais facilidade do que às interrogações específicas: aguentarei, provavelmente, até ao meu fim natural. A serenidade da velhice irá formando uma resistência cada vez maior a todas as interrogações inquietantes. Tudo indica que hei-de morrer em silêncio e rodeado de silêncio, na verdade até de forma específica, e antevejo isso com uma certa tranquilidade. Um coração admiravelmente resistente, pulmões que é impossível ficarem fracos prematuramente, foram-nos dados a nós, cães, como que por ironia. Assim, sobrevivemos a todas as interrogações, inclusive àquelas que colocamos a nós próprios, como autênticas fortalezas de silêncio que somos.
Franz Kafka, "Investigações de um cão"

João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)