28 de fev. de 2013

Gratifico de Livia Garcia Roza

 John William Waterhouse

Gratifico a quem encontrar meu amor. 
É grande, eu sei, 
mas estava desorientado.

Sonetilho de verão de Paulo Henriques Britto

Traído pelas palavras. 
O mundo não tem conserto. 
Meu coração se agonia. 
Minha alma se escalavra. 
Meu corpo não liga não. 
A idéia resiste ao verso, 
o verso recusa a rima, 
a rima afronta a razão 
e a razão desatina. 
Desejo manda lembranças. 

O poema não deu certo. 
A vida não deu em nada. 
Não há deus. Não há esperança. 
Amanhã deve dar praia.

26 de fev. de 2013

Idade - Maria Lúcia Dal Farra


A primavera agita zumbidos
de flores e de cio
enquanto o sol canta baixo
roçando meu anseio,
que flutua no pio das asas
na paina fresca da aragem.


Leveza:

é tudo quanto peço ao vento. 


 Livro de auras, 1994

Para ti de Mia Couto

                                                                                                                                            Anna Silivonchik


Foi para ti 
que desfolhei a chuva 
para ti soltei o perfume da terra 
toquei no nada 
e para ti foi tudo 

Para ti criei todas as palavras 
e todas me faltaram 
no minuto em que talhei 
o sabor do sempre 

Para ti dei voz 
às minhas mãos 
abri os gomos do tempo 
assaltei o mundo 
e pensei que tudo estava em nós 
nesse doce engano 
de tudo sermos donos 
sem nada termos 
simplesmente porque era de noite 
e não dormíamos 
eu descia em teu peito 
para me procurar 
e antes que a escuridão 
nos cingisse a cintura 
ficávamos nos olhos 
vivendo de um só 
amando de uma só vida



in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"


25 de fev. de 2013

Pomo (de Mínima lírica) de Paulo Henriques Britto

Gürbüz Doğan Ekşioğlu 

Da vida só têm substância 
a casca e o caroço. 
No meio só tem amido, 
embromações do carbono. 
Porém todo o gosto reside 
nessa carne intermediária, 
sem valor alimentício, 
sem realidade, sem nada. 

É nela que os dentes encontram 
o que os mantém afiados; 
com ela é que a língua elabora 
a doce palavra.


23 de fev. de 2013

Candido Torquato Portinari (Brodowski, 29 de dezembro de 1903 — Rio de Janeiro, 6 de fevereiro de 1962)



















Mínima poética de Paulo Henriques Britto


Poesia como forma de dizer

o que de outras formas é omitido—

não de calar o que se vive e vê 

e sente por vergonha do sentido. 

Poesia como discurso completo, 

ao mesmo tempo trama de fonemas, 

artesanato de éter, e projeto 

sobre a coisa que transborda o poema 

(se bem que dele próprio projetada). 

Palavra como lâmina só gume 

que pelo que recorta é recortada, 

cinzel de mármore, obra e tapume: 

a fala —esquiva, oblíqua, angulosa- 

do que resiste à retidão da prosa. 


De Mínima lírica (1989) [ metapoesia ]

22 de fev. de 2013

Datilógrafo de Mario Bendetti



era tão diferente era verde
absolutamente verde e com bondes
e que otimismo ter a janela
sentir-se dono da rua que desce
brincar com os números das portas fechadas
e apostar consigo mesmo em termos severos
solicitamos acusar recebimento o mais breve possível
se terminava em quatro ou treze ou dezessete
era que ia rir ou perder ou morrer
desta comunicação a fim de que possamos
e fazer-me tão-só uma trapaça por quadra
registrá-lo em sua conta corrente
absolutamente verde e com bondes
e o prado com caminhos de folhas secas
e o cheiro de eucaliptos e manhã
despedimo-nos atenciosamente
e daí em diante os anos e quem sabe

Mario Benedetti Do livro "Poemas do escritório"
Tradução de Julio Luís Gehlen

João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)