Tive sempre, desde criança, a necessidade de aumentar o mundo com personalidades fictícias, sonhos meus rigorosamente construídos, visionados com clareza fotográfica, compreendidos por dentro das suas almas. Não tinha eu mais que cinco anos, e, criança isolada e não desejando senão assim estar, já me acompanhavam algumas figuras de meu sonho — um capitão Thibeaut, um Chevalier de Pas — e outros que já me esqueceram, e cujo esquecimento, como a imperfeita lembrança daqueles, é uma das grandes saudades da minha vida.
Isto parece simplesmente aquela imaginação infantil que se entretém com a atribuição de vida a bonecos ou bonecas. Era porém mais: eu não precisava de bonecas para conceber intensamente essas figuras. Claras e visíveis no meu sonho constante, realidades exactamente humanas para mim, qualquer boneco, por irreal, as estragaria. Eram gente.
Além disto, esta tendência não passou com a infância, desenvolveu-se na adolescência, radicou-se com o crescimento dela, tornou-se finalmente a forma natural do meu espírito. Hoje já não tenho personalidade: quanto em mim haja de humano, eu o dividi entre os autores vários de cuja obra tenho sido o executor. Sou hoje o ponto de reunião de uma pequena humanidade só minha.
Trata-se, contudo, simplesmente do temperamento dramático elevado ao máximo; escrevendo, em vez de dramas em actos e acção, dramas em almas. Tão simples é, na sua substância, este fenómeno aparentemente tão confuso.
Não nego, porém — favoreço, até — a explicação psiquiátrica, mas deve compreender-se que toda a actividade superior do espírito, porque é anormal, é igualmente susceptível de interpretação psiquiátrica. Não me custa admitir que eu seja louco, mas exijo que se compreenda que não sou louco diferentemente de Shakespeare, qualquer que seja o valor relativo dos produtos do lado são da nossa loucura.
«Médium», assim, de mim mesmo, todavia subsisto.
Sou, porém, menos real que os outros, menos coeso [?], menos pessoal, eminentemente influenciável por eles todos. Sou também discípulo de Caeiro, e ainda me lembro do dia — 13 de Março de 1914 — quando, tendo «ouvido pela primeira vez» (isto é, tendo acabado de escrever, de um só hausto do espírito) grande número dos primeiros poemas do Guardador de Rebanhos, imediatamente escrevi, a fio, os seis poemas-intersecções que compõem a Chuva Oblíqua («Orpheu» 2), manifesto e lógico resultado da influência de Caeiro sobre o temperamento de Fernando Pessoa.
[Rascunho de uma carta a Adolfo Casais Monteiro -1935]
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966. - 101.
fonte: http://arquivopessoa.net/textos/
Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
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