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14 de dez. de 2015

Real :: Noemi Jaffe (São Paulo, 1962)

Maria Primachenko
real
atenção, atenção, você, que está perdido, angustiado, tenho a resposta para uma de suas perguntas mais difíceis! eu sei o que é o real! o real é: o ardor da pimenta, o pelo do gato,o frescor do vento, a raiva do vizinho, a inveja da moça mais bonita, a paranoia, as falsas impressões, as opiniões contraditórias, o desejo de ajudar alguém desconhecido, o desejo de esgoelar alguém conhecido, os elefantes cor de laranja, o buraco negro, o homem que cospe coelhos no conto do cortázar, o pipoqueiro que mora numa mansão aqui do lado da minha casa e o outro que pescou um peixe de trezentos quilos num riachinho de um bairro da periferia.

22 de mai. de 2015

Saudades! :: Fernando Pessoa


Saudades! Tenho-as até do que me não foi nada, por uma angústia de fuga do tempo e uma doença do mistério da vida. Caras que via habitualmente nas minhas ruas habituais - se deixo de vê-las entristeço; e não me foram nada, a não ser o símbolo de toda a vida.
 
O velho sem interesse das polainas sujas que cruzava frequentemente comigo às nove e meia da manhã? O cauteleiro coxo que me maçava inutilmente? O velhote redondo e corado do charuto à porta da tabacaria? O dono pálido da tabacaria? O que é feito de todos eles, que, porque os vi e os tornei a ver, foram parte da minha vida? Amanhã também eu me sumirei da Rua da Prata, da Rua dos Douradores, da Rua dos Fanqueiros. Amanhã também eu - a alma que sente e pensa, o universo que sou para mim - sim, amanhã eu também serei o que deixou de passar nestas ruas, o que outros vagamente evocarão com um «o que será dele?». E tudo quanto faço, tudo quanto sinto, tudo quanto vivo, não será mais que um transeunte a menos na quotidianidade de ruas de uma cidade qualquer.
fonte: http://arquivopessoa.net/

31 de mar. de 2015

Charles Bukowski

Edward Hopper. 
você pode não acreditar nisto 
mas há as pessoas 
que passam pela vida com 
muito pouca 
fricção de angústia. 

eles se vestem bem, dormem bem. 
eles estão contentes com 
a família deles. 
com a vida.

eles são imperturbáveis 
e freqüentemente se sentem 
muito bem. 
e quando eles morrem 
é uma morte fácil, normalmente durante o 
sono. 

você pode não acreditar nisto 
mas tais pessoas existem.
mas eu não sou nenhum deles.

oh não, eu não sou nenhum deles, 
eu não estou nem mesmo próximo 
para ser um deles.

mas eles 
estão lá ...

e eu estou aqui.

27 de mar. de 2015

Disritmia :: Adélia Prado

Os velhos cospem sem nenhuma destreza

e os velocípedes atrapalham o trânsito no passeio.

O poeta obscuro aguarda a crítica

e lê seus versos, as três vezes por dia,

feito um monge com seu livro de horas.

A escova ficou velha e não penteia.

Neste exato momento o que interessa

são os cabelos desembaraçados.

Entre as pernas geramos e sobre isso

se falará até o fim sem que muitos entendam:

erótico é a alma.

Se quiser, ponho agora a ária na quarta corda,

para me sentir clemente e apaziguada.

O que entendo de Deus é sua Ira,

não tenho outra maneira de dizer.

As bolas contra a parede me desgostam,

mas os meninos riem satisfeitos.

Tarde como a de hoje, vi centenas.

Não sinto angústia, só uma espera ansiosa.

Alguma coisa vai acontecer.

não existe o destino.

Quem é premente é Deus.

In:  Poesia Reunida. Siciliano.

10 de jul. de 2014

Há doenças piores que as doenças :: Fernando Pessoa

Marc Chagall, 1918

Há doenças piores que as doenças,
Há dores que não doem, nem na alma
Mas que são dolorosas mais que as outras.
Há angústias sonhadas mais reais
Que as que a vida nos traz, há sensações
Sentidas só com imaginá-las
Que são mais nossas do que a própria vida,
Há tanta coisa que, sem existir,
Existe, existe demoradamente,
E demoradamente é nossa e nós...
Por sobre o verde turvo do amplo rio
Os circunflexos brancos das gaivotas...
Por sobre a alma o adejar inútil
Do que não foi, nem pôde ser, e é tudo.
Dá-me mais vinho, porque a vida é nada.

In. Quando fui outro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.  p. 50.

12 de abr. de 2013

Não, não é cansaço... por Fernando Pessoa -Álvaro de Campos


Não, não é cansaço...
É uma quantidade de desilusão
Que se me entranha na espécie de pensar,
E um domingo às avessas
Do sentimento,
Um feriado passado no abismo...
Não, cansaço não é...
É eu estar existindo
E também o mundo,
Com tudo aquilo que contém,
Como tudo aquilo que nele se desdobra
E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais.
Não. Cansaço por quê?
É uma sensação abstrata
Da vida concreta —
Qualquer coisa como um grito
Por dar,
Qualquer coisa como uma angústia
Por sofrer,
Ou por sofrer completamente,
Ou por sofrer como...
Sim, ou por sofrer como...
Isso mesmo, como...
Como quê?...
Se soubesse, não haveria em mim este falso cansaço.
(Ai, cegos que cantam na rua,
Que formidável realejo
Que é a guitarra de um, e a viola do outro, e a voz dela!)
Porque oiço, vejo.
Confesso: é cansaço!...

7 de abr. de 2007

Carta de Frida Kahlo a Diego


Carta de Frida Kahlo a Diego

Querido Diego,

A grande verdade é que já não quisera nem falar, nem dormir, nem ouvir, nem querer. Sentir-me encerrada, sem medo do sangue, sem tempo nem magia, dentro de teu mesmo medo e dentro de tua grande angústia e na mesma batida do teu coração. Toda esta loucura, se te pedisse, já seria para teu silêncio somente confusão. Te peço violência na irracionalidade e tu me dás graças, tua luz e calor. Pintar-te quisera, porém não há cores, por havê-las tantas, em minha confusão, a forma concreta do meu grande amor.

O que os meus olhos vêem e que toco comigo mesma, desde todas as distâncias é Diego. A carícia das telas, a cor do calor, os arames, os nervos, os lápis, as células e o sol, tudo o que se vive nos minutos dos não-relógios, dos não-calendários e dos não olhares vazios, é ele, Diego…
Tu te chamarás Auxocromo, o que capta a cor, eu, Cromoforo, o que dá a cor. Tu és todas as combinações, todos os números. És a vida. Meu desejo é entender a linha, a forma, a sombra, o movimento. Tu transbordas e eu recebo. Tua palavra percorre o espaço e chega às minhas células, são meus astros que vão aos teus astros, que são a minha luz…
Ninguém saberá jamais como quero a Diego. Não quero que nada o machuque, que nada o moleste ou lhe tire a energia que ele necessita para viver. Viver da maneira como ele quiser. Pintar, ver, amar, comer, dormir, sentir-se sozinho, sentir-se acompanhado, porém nunca quisera que estivesse triste. Se eu tivesse saúde, quisera dá-la toda, se eu tivesse juventude, toda ela poderia tomar. Não sou louca, mãe, sou embrião, gérmen, a primeira céluda que, potencialmente, o gerou.
Sou ele desde as mais primitivas…e as mais antigas células que com o tempo se tornaram ele.
Se tão somente tivesse a meu lado tua carícia, como à terra o ar se lhe dá, a realidade de tua pessoa me faria mais alegre, me afastaria do sentimento que me enche de cinza. Nada já seria em mim tão fundo, tão final. Porém, como lhe explico minha necessidade enorme de ternura…minha solidão de anos…minha estrutura disforme por ser sem harmonia, por ser inadaptada. Eu creio que é melhor ir-me…ir-me…que tudo passe num instante…oxalá!


Nunca vi ternura maior do que a que Diego tem e quando suas maõs e seus belos olhos tocam as esculturas do México índio.
Nada comparável às tuas mãos nem nada igual ao ouro verde de teus olhos. Meu corpo se enche de ti por dias e dias. És o espelho da noite, a luz violeta do relâmpago, a umidade da terra. O côncavo de tuas axilas é meu refúgio. Minhas gemas tocam teu sangue. Toda minha alegria é sentir brotar tua vida de tua fonte-flor, que a minha guarda para encher todos os caminhos de meus nervos, que são os teus.
Afortunadamente, as palavras se foram fazendo…O que lhes deu a “verdade” absoluta? Nada é absoluto. Tudo se altera, tudo se move, tudo revoluciona – tudo volta e se vai…
Criança minha – da grande ocultadora. São seis horas da manhã e os guajulotes cantam, calor de humana ternura. Solidão acompanhada. Jamais, em toda a minha vida, esquecerei de tua presença. Me acolhestes destroçada e me devolvestes inteira. Nesta pequena terra, onde porei o olhar? Tão imensa, tão profunfa! Já não há tempo, já não há nada, distância.

Há somente realidade. O que se foi, foi para sempre! O que é, são as raizes que se assomam transparentes, transformadas. A árvore frutífera inteira. Teus frutos já dão seus aromas, tuas flores dão cor crescendo com a alegria do vento e da flor. Nome de Diego – nome de amor. Não deixeis que dê sede à árvore que tanto te amou, que guardou tua semente, que cristalizou tua vida às seis da manhã. Não deixeis que dê sede à árvore da qual és sol. És Diego, nome de amor. Não vale mais do que o riso.
É necessário rir e abandonar-se, ser ligeiro. A tragédia é o mais ridículo que tem o homem. Estou certa que os animais ainda que sofram não exibem suas penas em “teatros” abertos nem fechados (“os lares”). Sua dor é mais certa do que qualquer imagem que possa cada homem representar como dolorosa. Eu quisera poder ser o que quisesse – atrás da cortina da loucura, arranjaria as flores, todo o dia, pintaria a dor, o amor e a ternura, riria da estupidez dos outros e todos rirão: pobre, está louca! (Sobretudo riria da minha estupidez.)

Construiria meu mundo e enquanto vivesse estaria de acordo com todos os mundos. O dia ou a hora e o minuto que vivesse, seriam meus e de todos. Minha loucura não seria um escape do trabalho para que me mantiveram com seu labor.
A revolução é a harmonia da forma e da cor e tudo está e se move sob uma única lei: a vida. Ninguém se aparta de ninguém. Ninguém luta por si mesmo. Tudo é tudo e um. A angústia e a dor e o prazer e a morte não são mais que um processo para existir. A luta revolucionária neste processo é a porta aberta à inteligência. Diego, estou só. Diego, já não estou só. Tu me acompanhas, tu me adormeces, tu me animas. Árvore da esperança, mantenha-se firme…árvore da esperança, mantenha-se firme.
Ninguém é mais que um funcionamento ou uma função total. A vida passa e dá caminhos que não se percorrem em vão. Porém, ninguém pode deter-se livremente a brincar pelo caminho, porque retarda ou transforma a viagem atômica e geral. Dali vem o descontentamento, a desesperança, a tristeza.

Todos queríamos a soma e não o elemento número. As mudanças e a luta nos desconcertam, nos aterram por constantes e por certos, buscamos a calma e a “paz” porque nos antecipamos à morte, que morremos a cada segundo. Os opostos que se unem e nada novo nem arrítimico descobrimos. Nos amparamos, nos alarmamos no irracional, no mágico, no anormal, por medo da extraordinária beleza do certo, do material e do dialético, do são e forte.
Gostamos de ser enfermos para nos protegermos. Alguém – algo – nos protege sempre da verdade – nossa própria ignorância e nosso medo. Medo de tudo: medo de saber que não somos outra coisa que vetores – direção, construção e destruição para sermos vivos e sentirmos a angústia de esperar pelo minuto seguinte e participar na corrente completa de não saber que nos dirigimos a nós mesmos.
Variedade de pedras, de seres-aves, de seres-astros, de seres-micróbios, de seres-fontes, a nós mesmos. Variedade de um, incapacidade de escapar a dois, a três, o et cétera de sempre para regressar ao um. Porém, não a soma (chamada às vezes Deus, às vezes liberdade, às vezes amor).
Não somos ódio-amor-filho-planta-terra-luz-raio. et cétera de sempre. Mundana dor dos mundos, universos e células-universos. Tudo é tudo e um. A angústia e a dor, o prazer e a morte não são mais que um processo para existir.
Me amputaram a perna há seis meses, pareceram-me séculos de tortura e em momentos quase perdi a “razão”. Sigo sentindo vontade de suicidar-me. Diego é ele que me detém por crer que lhe possa fazer falta. Ele me disse e eu creio. Porém, nunca na vida sofri mais. Esperarei um tempo…espero alegre a saída e espero não voltar jamais.

Frida Kahlo

João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)