Mostrando postagens com marcador Coisas. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Coisas. Mostrar todas as postagens

8 de jun. de 2020

Nomear :: Mario Quintana

Utagawa Kunisada II

A Bela e o Dragão

As coisas que não têm nome assustam, escravizam-nos, devoram-nos...
Se a bela faz de ti gato e sapato, chama-lhe, por exemplo, A BELA DESDENHOSA.
E ei-la rotulada, classificada, exorcizada, simples marionete
agora, com todos os gestos perfeitamente previsíveis, dentro do seu papel de
boneca de pau. E no dia em que chamares a um dragão de JOLI, o dragão
te seguirá por toda parte como um cachorrinho...

Mario Quintana; Sapato Florido, 1948

18 de mar. de 2015

Vive : Fernando Pessoa

Felix Vallotton
Vive, dizes, no presente,
Vive só no presente.

Mas eu não quero o presente, quero a realidade;
Quero as coisas que existem, não o tempo que as mede.

O que é o presente?
É uma coisa relativa ao passado e ao futuro.
É uma coisa que existe em virtude de outras coisas existirem.
Eu quero só a realidade, as coisas sem presente.

Não quero incluir o tempo no meu esquema.
Não quero pensar nas cousas como presentes; quero pensar
nelas como coisas.
Não quero separá-las de si-próprias, tratando-as por presentes.

Eu nem por reais as devia tratar.
Eu não as devia tratar por nada.

Eu devia vê-las, apenas vê-las;
Vê-las até não poder pensar nelas,
Vê-las sem tempo, nem espaço,
Ver podendo dispensar tudo menos o que se vê. 
É esta a ciência de ver, que não é nenhuma.

Poemas Inconjuntos

In: Fernando Pessoa – Antologia Poética. 
Editora Ulisses


28 de ago. de 2014

COISAS CONCRETAS :: MIREN AGUR MEABE

Paul Gauguin, 1883
Estou sentada na cozinha, enquanto a massa ferve.

Amo as coisas concretas
descobrir seus nomes ao pequeno-almoço:
despertador, chuva na calçada, supermercado,
beijos na siesta,
um copo de vinho, amigos,
as pequenas mãos de meu filho,
pessoas na praça,
tu...

Elas produzem as mais doces e lânguidas cócegas,
como um banquete após o jejum.
Parece-me impossível afastar-me de tais coisas:
colam-se à minha caneta e parece que não consigo sacudi-las.

No entanto,
as coisas concretas não permitem atrasos,
e a massa já está pronta.
Assim é a vida.
Quando o semear do poema começava a germinar,
eis que o mundano vem intrometer-se.
E lá tenho eu que me levantar da mesa,
enquanto a sombra de um bilioso humor assenta.

21 de jun. de 2014

As coisas :: Arnaldo Antunes


As coisas têm peso,
massa,
volume,
tamanho,
tempo,
forma,
cor,
posição,
textura,
duração,
densidade,
cheiro,
valor,
consistência,
profundidade,
contorno,
temperatura,
função,
aprência,
preço,
destino,
idade,
sentido.
As coisas não têm paz.

26 de abr. de 2013

Las cosas - Jorge Luís Borges

El bastón, las monedas, el llavero,
la dócil cerradura, las tardías
notas que no leerán los pocos días
que me quedan, los naipes y el tablero,
un libro y en sus páginas la ajada
violeta, monumento de una tarde
sin duda inolvidable y ya olvidada,
el rojo espejo occidental en que arde
una ilusoria aurora. Cuántas cosas,
limas, umbrales, atlas, copas, clavos,
nos sirven como tácitos esclavos,
ciegas y extrañamente sigilosas
durarán más allá de nuestro olvido;
no sabrán nunca que nos hemos ido.
....................................................................
A bengala, as moedas, o chaveiro,
A dócil fechadura, as tardias
Notas que não lerão os poucos dias
Que me restam, os naipes e o tabuleiro.
Um livro e em suas páginas a seca
Violeta, monumento de uma tarde
Sem dúvida inesquecível e já esquecida,
O rubro espelho ocidental em que arde
Uma ilusória aurora. Quantas coisas,
Limas, umbrais, atlas, taças, cravos,
Nos servem como tácitos escravos,
Cegas e estranhamente sigilosas!
Durarão para além de nosso esquecimento;
Nunca saberão que nos fomos num momento.

18 de abr. de 2013

RECEITA DE CASA de RUBEM BRAGA

foto: Casa de Rubem Braga

Ciro dos Anjos escreveu, faz pouco tempo, uma de suas páginas mais belas sobre as antigas fazendas mineiras. Ele dá os requisitos essenciais a uma fazenda bastante lírica, incluindo, mesmo, uma certa menina de vestido branco. Nada sei dessas coisas, mas juro que entendo alguma coisa de arquitetura urbana, embora Caloca, Aldari, Jorge Moreira e Ernani, pobres arquitetos profissionais, achem que não.
Assim vos direi que a primeira coisa a respeito de uma casa é que ela deve ter um porão, um bom porão com entrada pela frente e saída pelos fundos. Esse porão deve ser habitável porém inabitado; e ter alguns quartos sem iluminação alguma, onde se devem amontoar móveis antigos, quebrados, objetos desprezados e baús esquecidos. Deve ser o cemitério das coisas. Ali, sob os pés da família, como se fosse no subconsciente dos vivos, jazerão os leques, as cadeiras, as fantasias do carnaval do ano de 1920, as gravatas manchadas, os sapatos que outrora andaram em caminhos longe.
Quando acaso descerem ao porão, as crianças hão de ficar um pouco intrigadas; e como crianças são animais levianos, é preciso que se intriguem um pouco, tenham uma certa perspectiva histórica, meditem que, por mais incrível e extraordinário que pareça, as pessoas grandes também já foram crianças, a sua avó já foi a bailes, e outras coisas instrutivas que são um pouco tristes mas hão de restaurar, a seus olhos, a dignidade corrompida das pessoas adultas.
Convém que as crianças sintam um certo medo do porão; e embora pensem que é medo do escuro, ou de aranhas caranguejeiras, será o grande medo do Tempo, esse bicho que tudo come, esse monstro que irá tragando em suas fauces negras os sapatos da criança, sua roupinha, sua atiradeira, seu canivete, as bolas de vidro, e afinal a própria criança.
O único perigo é que o porão faça da criança, no futuro, um romancista introvertido, o que se pode evitar desmoralizando periodicamente o porão com uma limpeza parcial para nele armazenar gêneros ou utensílios ou mais facilmente tijolos, por exemplo; ou percorrendo-o com uma lanterna elétrica bem possante que transformará hienas em ratos e cadafalsos em guarda-louças.
Ao construir o porão, deve o arquiteto obter um certo grau de umidade, mas providenciar para que a porta de uma das entradas seja bem fácil de arrombar, porque um porão não tem a menor utilidade se não supomos que dentro dele possa estar escondido um ladrão assassino, ou um cachorro raivoso, ou ainda anarquistas búlgaros de passagem por esta cidade.
Um porão supõe um alçapão aberto na sala de jantar. Sobre a tampa desse alçapão deve estar um móvel pesado, que fique exposto ao sol ao menos duas horas por dia, de tal modo que à noite estale com tanto gosto que do quarto das crianças dê a impressão exata de que o alçapão está sendo aberto, ou o terrível meliante já este já no interior da casa.
Não preciso fazer referência à varanda, nem ao carramanchão, nem à horta e jardim; mas se não houver ao menos um cajueiro, como poderá a família viver com decência? Que fará a família no verão, e que hão de fazer os sanhaços, e as crianças que matam os sanhaços, e as mulheres de casa que precisam ralhar com as crianças devido às nódoas de caju na roupa? Imaginem um menino de nove anos que não tem uma só mancha de caju em sua camisinha branca. Que honras poderá esperar essa criança na vida, se a inicia assim sem a menor dignidade?
Mas voltemos à casa. Ela deve ter janela para vários lados e se o arquiteto não providenciar para que na rua defronte passem bois para o matadouro municipal ele é um perfeito fracasso. E o piso deve ser de tábuas largas, jamais enceradas, de maneira que lavar a casa seja uma das alegrias domésticas. Depois de lavado o assoalho, são abertas as portas e janelas, para secar. E quando a madeira ainda estiver um pouco úmida, nas tardes de verão, ali se devem deitar as crianças, pois eis que isso é doce.
O que é essencial em uma casa - e entretanto quantos arquitetos modernos negligenciam isso, influenciados por idéias exóticas! - é a sala de visitas. Seu lugar natural é ao lado da sala de jantar Ela deve ter móveis incômodos e bem envernizados, e deve permanecer rigorosamente fechada através das semanas e dos meses. Naturalmente se abre para receber visitas, mas as visitas dessa categoria devem ser Rigorosamente selecionadas em conselho de família.
As crianças jamais devem entrar nessa sala, a não ser quando chamadas expressamente para cumprimentar as visitas. Depois de apertar a mão da visita, e de ouvir uma pequena referência ao fato de que estão crescidas (pois em uma família honrada as crianças estão sempre muito crescidas), devem esperar ainda cerca de dois minutos até que a visita lhes dirija uma pilhéria em forma de pergunta; por exemplo: se é verdade que já tem namorada. Devem então sorrir com condescendência (podem utilizar um pequeno ar entre a modéstia e o desprezo) e se retirar da sala.
Não desejo me alongar, mas não posso deixar de corrigir uma omissão grave.
Trata-se de uma gravura, devidamente emoldurada, com o retrato do Marechal Floriano Peixoto. Essa gravura deve estar no porão, não pregada na parede, mas em todo caso visível mediante a lanterna elétrica, em cima de um guarda-comida empoeirado, apoiada à parede. Pois é bem inseguro o destino de uma família que não tem no porão, empoeirado, mas vigilante, um retrato do Marechal de Ferro, impertérrito, frio, a manter na treva e no caos, entre baratas, ratos e aranhas, a dura ordem republicana.

In: Casa dos Braga. Record, 1997.

João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)