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5 de jul. de 2015

Músicas :: Ana Luísa Amaral

Xi Pan

Desculpo-me dos outros com o sono da minha filha.
E deito-me a seu lado,
a cabeça em partilha de almofada.

Os sons dos outros lá fora em sinfonia
são violinos agudos bem tocados.
Eu é que me desfaço dos sons deles
e me trabalho noutros sons.

Bartók em relação ao resto.

A minha filha adormecida.
Subitamente sonho-a não em desencontro como eu
das coisas e dos sons, orgulhoso
e dorido Bartók.

Mas nunca como eles
bem tocada
por violinos certos.




Minha Senhora de Quê

9 de set. de 2014

O som - Ferreira Gullar

Praça do Lido, Copacabana, RJ.

o som é da Terra
não há nenhuma música das esferas
como pensou Aristóteles

música barulho
o trepidar cristalino
da água
sob as folhas
é coisa terrestre

o cosmo é um vastíssimo silêncio
de bilhões e bilhões de séculos

nenhum ruído
as estrelas são imensas explosões mudas
um desatino

a matéria estelar
(a explodir)
é silêncio
e energia

Para outros ouvidos talvez
poderia ser o universo
um insuportável barulho;
não para os nossos
terrenos

Viver na Terra é ouvir
entre outras vozes
o marulho
do mar salgado e azul
ouvir a ventania a rasgar-se nos galhos
antes do temporal

só aqui
neste planeta é que
se pode escutar teu límpido gorjeio,
passarinho,
pequenino cantor
da praça do Lido.

2 de set. de 2013

Allegro de Tomas Tranströmer


http://independent.academia.edu/LucianoDutra/Papers/1934414/Tomas_Transtromer_Samlade_dikter_-_amostra_de_traducao_do_

28 de jun. de 2013

Palavras aladas de Marina Colassanti

Madeleine Colaço 

Silêncio era a coisa de que aquele rei mais gostava. E de que, a cada dia, mais parecia gostar. Qualquer ruído, dizia, era faca em seus ouvidos.
Por isso, muito jovem ainda, mandou construir altíssimos muros ao redor do castelo. E logo, não satisfeito, ordenou que por cima dos muros, e por cima das torres, por cima dos telhados e dos jardins, passasse imensa redoma de vidro. Agora sim, nenhum som entrava no castelo.O mundo podia gritar lá fora, que dentro nada se ouviria. E mesmo a tempestade fez-se muda, sem que rolar de trovão ou correr de vento perturbassem a serenidade das sedas.
-Ouçam que preciosidade!- dizia o rei.E toda a corte se calava ouvindo embevecidamente coisa alguma.
Mas se os sons não podiam entrar, verdade é que também não podiam sair. Qualquer palavra dita, qualquer espirro, soluço, canto, ficava vagando prisioneiro do castelo, sem que lhe fossem de valia fresta de janela ou porta esquecida aberta. Pois se ainda era possível escapar às paredes, nada os libertava da redoma.
Aos poucos, tempo passando sem que ninguém lhe ouvisse os passos, palavras foram se acumulando pelos cantos, frases serpentearam na superfície dos móveis, interjeições salpicaram as tapeçarias, um miado de gato arranhou os corredores.
E tudo teria continuado assim, se um dia, no exato momento em que sua majestade recebia um embaixador estrangeiro, não atravessasse a sala do trono uma frase desgarrada. Frase de cozinheiro que, sobrepondo-se aos elogios reais, mandou o embaixador depenar, bem depressa, uma galinha.
Mais do que os ouvidos, a frase feriu o orgulho do rei. Furioso, deu ordens para que todos os sons usados fossem recolhidos, e para sempre trancados no mais profundo calabouço.
Durante dias os cortesãos empenharam-se naquele novo esporte que os levava a sacudir cortinas e a rastejar sob os móveis. A audição certeira abatia exclamações em pleno vôo, algemava rimas, desentocava cochichos. Uma condessa encheu um cesto com um cento de acentos. Um marquês de monóculo fez montinhos de monossílabos. E houve até quem garantisse ter apanhado entre os dedos o delicado não de uma donzela. Enfim, divertiram-se tanto, tão entusiasmados ficaram com a tarefa, que acabaram por instituir a Temporada Anual de Caça à Palavra.
De temporada em temporada, esvaziava-se o castelo de seus sons, enchia-se o calabouço de conversas. A tal ponto que o momento chegou em que ali não cabia mais sequer o quase silêncio de uma vírgula. E o Mordomo Real viu-se obrigado a transferir secretamente parte dos sons para aposentos esquecidos do primeiro andar.
Foi portanto por acaso que o rei passou frente a um desses cômodos. E passando ouviu um murmúrio, rasgo de conversa. Pronto a reclamar, já a mão pousava na maçaneta, quando o calor daquela voz o reteve. E inclinado à fechadura para melhor ouvir, o rei colheu as lavas, palavras, com que um jovem, de joelhos talvez, derramava sua paixão aos pés da amada.
A lembrança daquelas palavras pareceu voltar ao rei de muito longe, atravessando o tempo, ardendo novamente no peito. E em cada uma ele reconheceu com surpresa sua própria voz, sua jovem paixão. Era sua aquela conversa de amor há tantos anos trancada. Fio da longa meada do passado, vinha agora envolvê-lo, religá-lo a si mesmo, exigindo sair de calabouços.
-Que se abram as portas!- gritou comovido, pela primeira vez gostando do seu grito, ele que sempre havia falado tão baixo. E escancarou os batentes à sua frente.
-Que se derrube a redoma!- lançou então o rei com todo o poder de seus pulmões. - Que se abatam os muros!
E desta vez vai o grito por entre o estilhaçar, subindo, planando, pássaro-grito que no azul se afasta, trazendo atrás de si em revoada frases, cantigas, epístolas, ditados, sonetos, epopéias, discursos e recados, e ao longe maritacas! Um bando de risadas. Sons que no espaço se espalham levando ao mundo a vida do castelo, e que, aos poucos, em liberdade se vão.

COLASANTI, Marina. Doze reis e a moça no labirinto do vento. São Paulo: Global, 1999.

João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)