29 de out. de 2023

Betsy: Rubem Fonseca


Lorena Salido


Betsy esperou a volta do homem para morrer.

Antes da viagem ele notara que Betsy mostrava um apetite incomum. Depois surgiram outros sintomas, ingestão excessiva de água, incontinência urinária. O único problema de Betsy até então era a catarata numa das vistas. Ela não gostava de sair, mas antes da viagem entrara inesperadamente com ele no elevador e os dois passearam no calçadão da praia, algo que ela nunca fizera. No dia em que o homem chegou, Betsy teve o derrame e ficou sem comer. Vinte dias sem comer, deitada na cama com o homem. Os especialistas consultados disseram que não havia nada a fazer. Betsy só saia da cama para beber água.

O homem permaneceu com Betsy na cama durante toda a sua agonia, acariciando seu corpo, sentindo com tristeza a magreza de suas ancas. No último dia, Betsy, muito quieta, os olhos azuis abertos, fitou o homem com o mesmo olhar de sempre, que indicava o conforto e o prazer produzidos pela presença e pelos carinhos dele. Começou a tremer e ele a abraçou com mais força. Sentindo que os membros dela estavam frios, o homem arranjou para Betsy uma posição confortável na cama. Então ela estendeu o corpo, parecendo se espreguiçar, e virou a cabeça para trás, num gesto cheio de langor. Depois esticou o corpo ainda mais e suspirou, uma exalação forte. O homem pensou que Betsy havia morrido. Mas alguns segundos depois ela emitiu novo suspiro. Horrorizado com sua meticulosa atenção o homem contou, um a um, todos os suspiros de Betsy. Com o intervalo de alguns segundos ela exalou nove suspiros iguais, a língua para fora, pendendo do lado da boca. Logo ela passou a golpear a barriga com os dois pés juntos, como fazia ocasionalmente, apenas com mais violência. Em seguida, ficou imóvel. O homem passou a mão de leve no corpo de Betsy. Ela se espreguiçou e alongou os membros pela última vez. Estava morta. Agora, o homem sabia, ela estava morta.

A noite inteira o homem passou acordado ao lado de Betsy, afagando-a de leve, em silêncio, sem saber o que dizer. Eles haviam vivido juntos dezoito anos.

De manhã, ele a deixou na cama e foi até a cozinha e preparou um café puro. Foi tomar o café na sala. A casa nunca estivera tão vazia e triste.

Felizmente o homem não jogara fora a caixa de papelão do liqüidificador. Voltou para o quarto. Cuidadosamente, colocou o corpo de Betsy dentro da caixa. Com a caixa debaixo do braço caminhou para a porta. Antes de abri-la e sair, enxugou os olhos. Não queria que o vissem assim.

Rubem Fonseca.  Histórias de amor. Companhia das Letras, São Paulo, 1997.


23 de out. de 2023

Fim e Começo :: Wislawa Szymborska

Depois de cada guerra
alguém tem que fazer a faxina.
Colocar uma certa ordem
que afinal não se faz sozinha.
Alguém tem que jogar o entulho
para o lado da estrada
para que possam passar
os carros carregando os corpos.

Alguém tem que se atolar
no lodo e nas cinzas
em molas de sofás
em cacos de vidro
e em trapos ensanguentados.

Alguém tem que arrastar a viga
para apoiar a parede,
pôr a porta nos caixilhos,
envidraçar a janela.

A cena não rende foto
e leva anos.
E todas as câmeras já debandaram
para outra guerra.

As pontes têm que ser refeitas,
e também as estações.
De tanto arregaçá-las,
as mangas ficarão em farrapos.

Alguém de vassoura na mão
ainda recorda como foi.
Alguém escuta
meneando a cabeça que se safou.
Mas ao seu redor
já começam a rondar
os que acham tudo muito chato.

Às vezes alguém desenterra
de sob um arbusto
velhos argumentos enferrujados
e os arrasta para o lixão.

Os que sabiam
o que aqui se passou
devem dar lugar àqueles
que pouco sabem.
Ou menos que pouco.
E por fim nada mais que nada.

Na relva que cobriu
as causas e os efeitos
alguém deve se deitar
com um capim entre os dentes
e namorar as nuvens.

3 de out. de 2023

Banhos de mar :: Clarice Lispector


Meu pai acreditava que todos os anos se devia fazer uma cura de banhos de mar. E nunca fui tão feliz quanto naquelas temporadas de banhos em Olinda, Recife.

Meu pai também acreditava que o banho de mar salutar era o tomado antes do sol nascer. Como explicar o que eu sentia de presente inaudito em sair de casa de madrugada e pegar o bonde vazio que nos levaria para Olinda ainda na escuridão?

De noite eu ia dormir, mas o coração se mantinha acordado, em expectativa. E de puro alvoroço, eu acordava às quatro e pouco da madrugada e despertava o resto da família. Vestíamo-nos depressa e saíamos em jejum. Porque meu pai acreditava que assim devia ser: em jejum.

Saíamos para uma rua toda escura, recebendo a brisa da pré-madrugada. E esperávamos o bonde. Até que lá de longe ouvíamos o seu barulho se aproximando. Eu me sentava bem na ponta do banco: e minha felicidade começava. Atravessar a cidade escura me dava algo que jamais tive de novo. No bonde mesmo o tempo começava a clarear e uma luz trêmula de sol escondido nos banhava e banhava o mundo.

Eu olhava tudo: as poucas pessoas na rua, a passagem pelo campo com os bichos-de-pé: “Olhe um porco de verdade!” gritei uma vez, e a frase de deslumbramento ficou sendo uma das brincadeiras de minha família, que de vez em quando me dizia rindo: “Olhe um porco de verdade.”

Passávamos por cavalos belos que esperavam de pé pelo amanhecer.

Eu não sei da infância alheia. Mas essa viagem diária me tornava uma criança completa de alegria. E me serviu como promessa de felicidade para o futuro. Minha capacidade de ser feliz se revelava. Eu me agarrava, dentro de uma infância muito infeliz, a essa ilha encantada que era a viagem diária.

No bonde mesmo começava a amanhecer. Meu coração batia forte ao nos aproximarmos de Olinda. Finalmente saltávamos e íamos andando para as cabinas pisando em terreno já de areia misturada com plantas. Mudávamos de roupa nas cabinas. E nunca um corpo desabrochou como o meu quando eu saía da cabina e sabia o que me esperava.

O mar de Olinda era muito perigoso. Davam-se alguns passos em um fundo raso e de repente caía-se num fundo de dois metros, calculo.

Outras pessoas também acreditavam em tomar banho de mar quando o sol nascia. Havia um salva-vidas que, por uma ninharia de dinheiro, levava as senhoras para o banho: abria os dois braços, e as senhoras, em cada um dos braços, agarravam o banhista para lutar contra as ondas fortíssimas do mar.

O cheiro do mar me invadia e me embriagava. As algas boiavam. Oh, bem sei que não estou transmitindo o que significavam como vida pura esses banhos em jejum, com o sol se levantando pálido ainda no horizonte. Bem sei que estou tão emocionada que não consigo escrever. O mar de Olinda era muito iodado e salgado. E eu fazia o que no futuro sempre iria fazer: com as mãos em concha, eu as mergulhava nas águas, e trazia um pouco de mar até minha boca: eu bebia diariamente o mar, de tal modo queria me unir a ele.

Não demorávamos muito. O sol já se levantara todo, e meu pai tinha que trabalhar cedo. Mudávamos de roupa, e a roupa ficava impregnada de sal. Meus cabelos salgados me colavam na cabeça.

Então esperávamos, ao vento, a vinda do bonde para Recife. No bonde a brisa ia secando meus cabelos duros de sal. Eu às vezes lambia meu braço para sentir sua grossura de sal e iodo.

Chegávamos em casa e só então tomávamos café. E quando eu me lembrava de que no dia seguinte o mar se repetiria para mim, eu ficava séria de tanta ventura e aventura.

Meu pai acreditava que não se devia tomar logo banho de água doce: o mar devia ficar na nossa pele por algumas horas. Era contra a minha vontade que eu tomava um chuveiro que me deixava límpida e sem o mar.

A quem devo pedir que na minha vida se repita a felicidade? Como sentir com a frescura da inocência o sol vermelho se levantar? Nunca mais?

Nunca mais.

Nunca.

2 de out. de 2023

Eduardo Galeano :: O Medo Global

 Os que trabalham têm medo de perder o trabalho.

Os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho.

Quem não tem medo da fome, tem medo de comida.

Os motoristas têm medo de caminhar e os pedestres têm medo de serem atropelados.

A democracia tem medo de lembrar e a linguagem tem medo de dizer.

Os civis têm medo dos militares, os militares têm medo da falta de armas, as armas têm medo da falta de guerras.

É o tempo do medo.

Medo da mulher da violência do homem e medo do homem da mulher sem medo.

Medo dos ladrões, medo da polícia.

Medo da porta sem fechaduras, do tempo sem relógios, da criança sem televisão, medo da noite sem comprimidos para dormir e medo do dia sem comprimidos para despertar.

Medo da multidão, medo da solidão, medo do que foi e do que pode ser, medo de morrer, medo de viver.


in: 𝘋𝘦 𝘱𝘦𝘳𝘯𝘢𝘴 𝘱𝘳𝘰 𝘢𝘳: 𝘢 𝘦𝘴𝘤𝘰𝘭𝘢 𝘥𝘰 𝘮𝘶𝘯𝘥𝘰 𝘢𝘰 𝘢𝘷𝘦𝘴𝘴o.

João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)