30 de abr. de 2020

Escambo:: Noemi Jaffe

os minutos que vêm logo depois de acordar, ainda entre o sono e a vigília, são cheios de possibilidades que, assim que a vigília predomina, soam absurdos. durante esses minutos tenho certeza de que vou publicar um livro único sobre o qual ninguém nunca tinha pensado e que vai fazer um sucesso internacional; encontro uma maneira de conseguir visitar minha mãe todos os dias; descubro um jeito de fazer escambo com os melhores restaurantes da cidade: redijo os cardápios e, em troca, eles me oferecem jantares de graça por um ano. não, mais de um ano, quem sabe para sempre. essa brecha de luz embaçada, esse tempo não cronológico, não linear, entre a entrega ao outro e a posse de si mesmo é um momento privilegiado, que eu gostaria de agarrar com os dedos e levar comigo na bolsa. nos momentos chatos do dia, eu o tiraria de lá, vestiria como se fossem óculos e veria o mundo com cores esfumaçadas, brilhantes, engraçadas, do jeito que eu quisesse. 

27 de abr. de 2020

Dicionário das Tristezas Obscuras :: John Koenig

1. Adronitis
Frustrar-se com a quantidade de tempo necessário para se conhecer bem alguém.

 2. Aimonimia
Medo de que aprender o nome de algo – um pássaro, uma constelação, uma pessoa bonita – irá estragar tudo. Transformando uma descoberta do acaso em uma casca conceitual vazia.

3. Altschmerz
Exaustão diante dos problemas que você sempre teve – as mesmas falhas e ansiedades entediantes que vêm lhe atormentando por anos.

4. Ambedo
Tipo de transe melancólico no qual você se torna completamente absorto por pequenos detalhes sensoriais – pingos de chuva escorrendo pela janela, árvores altas se dobrando lentamente com o vento, espirais de creme se formando no café –  levando a uma devastadora constatação da fragilidade da vida.

5. Anchorage
Desejo de segurar o tempo enquanto ele passa, como tentar se segurar em uma pedra diante de uma forte correnteza bem no meio de um rio.

6. Anecdoche
Conversa em que todo mundo está falando mas ninguém está ouvindo.

7. Anemoia
Nostalgia de um tempo no qual você nunca viveu.

8. Anthrodynia
Estado de exaustão ao perceber como as pessoas podem ser horríveis umas com as outras.

9. Chrysalism
A tranquilidade confortável de se estar dentro de casa durante uma tempestade.

10. Ecstatic Shock
Onda de energia que surge ao olhar de relance para alguém que você gosta.

11. Ellipsism
Tristeza por não ser capaz de saber como a história vai terminar.

12. Énouement
Sensação agridoce por ter chegado no futuro, visto como tudo aconteceu, mas não poder contar para o seu ‘eu’ do passado.

13. Exulansis
Tendência de desistir ao tentar falar sobre uma determinada experiência porque as pessoas são incapazes de se relacionar com ela.

14. Gnossienne
Momento em que você percebe que alguém que você conhece há anos, tem uma vida interna, privada e misteriosa.

15. Jouska
Conversa hipotética que você repete compulsivamente na sua cabeça.

16. Kairosclerosis
Momento em que você percebe que está feliz – e tenta conscientemente aproveitar essa sensação – o que obriga seu intelecto a identificar e colocar a sensação em um contexto, onde a felicidade lentamente se dissolve até se tornar pouco mais do que um retrogosto.

17. Kenopsia
Atmosfera misteriosa e desamparada de um lugar que normalmente está cheio de gente, mas que agora está abandonado e quieto.
18. Lachesism
Desejo de ser atingido por um desastre – sobreviver a uma queda de avião, ou perder tudo em um incêndio.

19. Lalalalia
Dar-se conta, enquanto fala sozinho, que outra pessoa pode estar escutando, levando-o- a rapidamente transformar as palavras em um cantarolar sem sentido.
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0. Lapyear
Idade em que você se torna mais velho de quando seus pais eram quando você nasceu.

21. Lethobenthos
Hábito de esquecer o quão importante uma pessoa é para você, até o momento em que você a encontra pessoalmente.

22. Liberosis
Desejo de se importar menos com as coisas.

23. Mimeomia
Frustração ao perceber o quão facilmente você se encaixa em um estereótipo.
24. Monachopsis
Sentimento sutil, porém persistente, de estar fora de lugar.

25. Moriturism
Perceber, como um solavanco durante um momento de insônia, que você vai morrer.
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6. Nementia
O esforço que vem logo após um momento de distração, para lembrar porque é mesmo que você está se sentindo irritada, ou ansiosa, ou animada.

27. Nodus Tollens
Dar-se conta de que o roteiro da sua vida já não faz o menor sentido.

28. Occhiolism
Dar-se conta da pequenez da sua perspectiva. Com a qual você não tem como chegar a qualquer conclusão significativa sobre o mundo, o passado, ou as complexidades da cultura.

29. Onism
Frustração de estar preso em apenas um corpo que habita apenas um lugar por vez.

30. Opia
Intensidade ambígua de olhar alguém nos olhos, e sentir-se simultaneamente invasivo e vulnerável.

31. Reverse Shibboleth
Prática de atender o telefone com um “alô?” genérico, como se você já não soubesse quem está ligando.

32. Rückkehrunruhe
Sentimento de voltar para casa depois de uma viagem imersiva, e perceber que toda a experiência já está desaparecendo rapidamente da sua consciência.

33. Sonder
Dar-se conta de que cada pessoa tem uma vida tão vívida e complexa quanto a sua – preenchida por ambições, amigos, rotinas, preocupações e loucura.

34. Scabulous
Sentir orgulho de uma cicatriz. Como um autógrafo dado a você pelo mundo.

35. The Bends
A frustração ao perceber que você não está aproveitando uma experiência tanto quanto deveria.

36. Trumspringa
A tentação de sair da sua meta de carreira e se tornar pastor de ovelhas nas montanhas.

37. Vemödalen
Frustração ao fotografar algo incrível quando milhares de outras fotos idênticas já existem.

38. Vemödalen
Medo de que tudo já tenha sido feito.

39. Waldosia
Olhar para todos os rostos em uma multidão, procurando uma pessoa específica que não teria motivo algum para estar aí.

40. Zenosyne
Sensação de que o tempo está passando cada vez mais rápido.


 Não se trata de uma tentativa de condensar emoções e rotulá-las em novos conceitos. O “Dicionário das Tristezas Obscuras” é, em si mesmo, poesia. São ideias e sensações sublimadas em arte.
Não são palavras prisioneiras das limitações próprias do que se define. O trabalho de Koenig é criação, expressão livre e artística, que proporciona a identificação com a subjetividade humana.
fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/The_Dictionary_of_Obscure_Sorrows

26 de abr. de 2020

DANÇA, CLARICE :: Pedro Américo de Farias

Pyotr Konchalovsky
Canta e dança, Clarice!
que afora isso
só a topada nos leva
canta, Clarice
que além disso
o gesto nos traduz
e a fala nos anuncia
dança, Clarice
que o corpo malhado
pelo sim pelo não
desperta melhor
a cada manhã
dança e canta, Clarice!


Coisas: poemas etc. Linguaraz Editor, Recife, 2015.

17 de abr. de 2020

CARNAVAL CARIOCA DE MARIO DE ANDRADE : carta para Manuel Bandeira


"Meu Manuel… Carnaval!… Perdi o trem, perdi a vergonha, perdi a energia… Perdi tudo. Menos minha faculdade de gozar, de delirar… Fui ordinaríssimo. Além do mais: uma aventura curiosíssima. Desculpa contar-te toda esta pornografia. Mas… que delícia, Manuel, o Carnaval do Rio! Que delícia, principalmente, meu Carnaval! […] Meu cérebro acanhado, brumoso de paulista, por mais que se iluminasse em desvarios, em prodigalidades de sons, luzes, cores, perfumes, pândegas, alegria, que sei lá!, nunca seria capaz de imaginar um Carnaval carioca, antes de vê-lo. Foi o que se deu. Imaginei-o paulistamente. […] Admirei repentinamente o legítimo carnavalesco, o carnavalesco carioca, o que é só carnavalesco, pula e canta e dança quatro dias sem parar. Vi que era um puro! Isso me entonteceu e me extasiou. O carnavalesco legítimo, Manuel, é um puro. Nem lascivo, nem sensual. Nada disso. Canta e dança. Segui um deles uma hora talvez. Um samba num café. Entrei. Outra hora se gastou. Manuel, sem comprar um lança-perfume, uma rodela de confete, um rolo se serpentina, diverti-me 4 noites inteiras e o que dos dias me sobrou do sono merecido. E aí está porque não fui visitar-te. Estou perdoado." 
MORAES, M. A.(org.). Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. São Paulo: EDUSP, 2002, pp.84-85.

13 de abr. de 2020

A beleza que se diz :: Valter Hugo Mãe


Van Gogh 
"(...) só existe a beleza que se diz. Só existe a beleza se existir interlocutor. A beleza da lagoa é sempre alguém. Porque a beleza da lagoa só acontece porque a posso partilhar. Se não houver ninguém, nem a necessidade de encontrar a beleza existe nem a lagoa será bela. A beleza é sempre alguém, no sentido em que ela se concretiza apenas pela expectativa da reunião com o outro. (...) Ainda que as palavras sejam débeis. As palavras são objetos magros incapazes de conter o mundo. Usamo-las por pura ilusão. Deixámo-nos iludir assim para não perecermos de imediato conscientes da impossibilidade de comunicar e, por isso, a impossibilidade da beleza. Todas as lagoas do mundo dependem de sermos ao menos dois. Para que um veja e o outro ouça. Sem um diálogo não há beleza e não há lagoa."
 in : A desumanização. Porto Editora, 2014.

10 de abr. de 2020

Um homem em sua vida :: Yehuda Amichai


Um homem não tem tempo em sua vida
para ter tempo para cada coisa.
Ele não possui momentos suficientes para ter
um momento para cada coisa. O Eclesiastes
Estava errado a esse respeito.

Um homem precisa amar e odiar no mesmo instante,
rir e chorar com os mesmos olhos,
com as mesmas mãos atirar e ajuntar as pedras,
fazer amor na guerra e guerra no amor.
E odiar e perdoar e lembrar e esquecer,
arranjar e confundir, comer e digerir
o que a história
leva anos para fazer.

Um homem não tem tempo.
Quando ele perde ele busca, quando ele encontra
esquece, quando esquece ele ama, quando ama
começa a esquecer.

E sua alma amadurece, sua alma
é muito profissional.
Apenas seu corpo permanece para sempre
um amador. Comete erros e acerta,
perturba-se, não aprende nada,
bêbado e cegado por seus prazeres
e suas dores.

Ele morrerá como os figos morrem no outono,
Enrugado e cheio de si mesmo e doçura,
as folhas ressecando no solo,
os galhos nus apontando para o lugar
onde há tempo para todas as coisas.

Tradução .: Pedro Gonzaga

Um homem e a Sua Vida ( poema para tempos escassos):: Yehuda Amichai

Um homem não tem tempo na sua vida

para ter tempo para tudo.

Não tem momentos que cheguem para ter

momentos para todos os propósitos. Eclesiastes

está enganado acerca disto.


Um homem precisa de amar e odiar no mesmo instante,

de rir e chorar com os mesmos olhos,

com as mesmas mãos atirar e juntar pedras,

de fazer amor durante a guerra e guerra durante o amor.

E de odiar e perdoar e lembrar e esquecer,

de planear e confundir, de comer e digerir

que história

leva anos e anos a fazer.


Um homem não tem tempo.

Quando perde procura, quando encontra

esquece, quando esquece ama, quando ama

começa a esquecer.


E a sua alma é erudita, a sua alma

é profissional.

Só o seu corpo permanece sempre

um amador. Tenta e falha,

fica confuso, não aprende nada,

embriagado e cego nos seus prazeres

e nas suas mágoas.


Morrerá como um figo morre no Outono,

Enrugado e cheio de si e doce,

as folhas secando no chão,

os ramos nus apontando para o lugar

onde há tempo para tudo.

9 de abr. de 2020

Rita Lee e a quarentena


"Eu, que pago para não sair de casa, que só saio da toca em caso de emergência, tenho algumas dicas para você se distrair enquanto estiver em isolamento forçado. Há 8 anos vivo enfurnada e há sempre coisas interessantes para fazer.

Nada melhor do que ter a companhia de bichos, que oferecem serenidade e alegria: cuidar e brincar com animais faz o tempo passar de maneira mais divertida. Arranjar uma mudinha de planta e acompanhar o crescimento dela é emocionante. Aproveite e plante em vasinhos: cebolinha, salsinha, tomates-cereja... até alface. Descole uma orquídea, ainda com brotinhos, para acompanhar o desabrochar, lindamente, dia a dia.

Espalho telas e tintas sobre uma mesa e me arrisco a pintar alguma coisa, mexer com cores dá uma alegria na cabeça enquanto escuto músicas que me fazem feliz. Tenho feito tricô, fabrico mantas para os bichos usarem quando o inverno chegar. Escrevi uma letra vudu sobre o coronavírus e fiz uma música punk para combinar com a noia que acontece: chama-se ‘Vírus do horror’.

Faço minhas unhas e pinto de várias cores. Pratico feldenkrais por skype para meu corpo não enferrujar. Assisto séries diversas e filmes antigos na TV. Outro dia matei a saudade de um clássico dos anos 1950, ‘O dia em que a Terra parou’, bem no clima de hoje. E, é claro, sempre rola um filme de James Dean no salão.

Escolhi passar apenas 3 horas por dia acompanhando as notícias do coronavírus, mais do que isso fico deprê. Depois, acendo velas e incensos na frente do meu altarzinho com todo tipo de divindades. Peço, em especial, para Nossa Senhora Aparecida proteger o Brasil com seu manto milagroso.

Ando fuçando minha biblioteca, escolhendo livros que já li e esqueci. Arrumo gavetas, jogo fora um monte de traquitanas inúteis que acumulei ao longo dos anos. Fico namorando e limpando minha coleção de cristais phantom e meus pesos de papel. Lavo as mãos duzentas vezes por dia cantando ‘Parabéns a você’ e estou viciada em passar álcool gel, hábitos modernos.

Tenho a sorte de morar numa casinha no meio do mato com meu namorado e passeamos pelo jardim conversando com as plantas. Acabei de escrever um livro e não consigo defini-lo: se é um diário, citações esquisitas, autoajuda a mim mesma ou nonsenses da minha cabeça.

Pego o violão e noto que esqueci como tocar a maioria das minhas músicas. O que me deixa mais triste é não poder receber visitas dos meus filhos e netos, mas nada que um facetime não resolva provisoriamente.

Minha impressão é a de que nesse confinamento forçado que a humanidade está sendo obrigada a passar há um propósito Divino. Um teste para que aqueles que sobreviverem a essa guerra invisível se conscientizem de que o planeta Terra está realmente sendo destruído pelos donos do poder de cada país. E que se não modificarem radicalmente seus comportamentos em todas as áreas, aí, sim, será a Terceira Guerra derradeira. Saúde física, mental, psicológica e espiritual para todos!”

João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)