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15 de set. de 2014

COMER, COMER :: Clarice Lispector

Ekaterina Pozdniakova

Não sei como são as outras casas de família. Na minha casa todos falam em comida. “Esse queijo é seu?”  “Não, é de todos.”  “A canjica está boa?”  “Está ótima.”  “Mamãe, pede à cozinheira para fazer coquetel de camarão, eu ensino.”  “Como é que você sabe?”   “Eu comi e aprendi pelo gosto.”  “Quero hoje comer somente sopa de ervilhas e sardinha.”  ”Essa carne ficou salgada demais.”  “Estou sem fome, mas se você comprar pimenta eu como.”  “Não, mamãe, ir comer no restaurante sai muito caro, e eu prefiro comida de casa.”  “Que é que tem no jantar para comer?”
 
Não, minha casa não é metafísica. Ninguém é gordo aqui, mas mal se perdoa uma comida malfeita. Quanto a mim, vou abrindo e fechando a bolsa para tirar dinheiro para compras. “Vou jantar fora, mamãe, mas guarde um pouco do jantar para mim.”  E quanto a mim, acho certo que num lar se mantenha aceso o fogo para o que der e vier. Uma casa de família é aquela que, além de nela se manter o fogo sagrado do amor bem aceso, mantenham-se as panelas no fogo. O fato é simplesmente que nós gostamos de comer. E sou com orgulho a mãe da casa de comidas. Além de comer conversamos muito sobre o que acontece no Brasil e no mundo, conversamos sobre que roupa é adequada para determinadas ocasiões. Nós somos um lar.
In: A descoberta do mundo. Editora Nova Fronteira, 1984. p. 222

29 de jan. de 2012

Meu avô de Débora Siqueira Bueno




"SONHO Na verdade, sonhar é outra maneira de lembrar."  Freud 

Essa noite sonhei com o pai de minha mãe, 
meu avô bonito e mudo. 
No sonho ele falava comigo, 
reclamava de eu ter dito bom dia. 
– É porque eu gosto do senhor, Vô! 
Estava no meu quarto de menina. 
Acomodei-o para que dormisse, 
mas ele prosseguiu e conversava. 
Seus olhos claros tinham um brilho 
que a vida embaçou e nunca vi. 
A voz cascateava, alegre até, 
num tom que também não conheci. 
Meu avô falava grego e latim; 
criança, quis achar sua linguagem. 
Às vezes brincava quieta ao seu lado, 
horas. 
Olhava-o de soslaio, tímida sorria, 
esperando que a vida aparecesse. 

Uma vez vieram seus irmãos, 
os nomes muito antigos: 
Gamaliel, Arcelino, 
Alberico, Pergentino. 
Sóbrios, com seus chapéus na mão, 
traziam os cheiros da fazenda. 
Doce de leite, goiabada e rapadura 
os presentes dados. 
A conversa era pausada, 
Siqueiras são circunspetos. 
Sentados na varanda em frente ao rio 
o que mais se ouvia era a voz das águas. 
Foi quando ouvi a voz do meu avô, 
única vez. 

Meu avô me dava livros, muitos, 
devolvidos à minha avó porque pensava 
que me eram dados por engano. 
Sobraram dois – 
um, de botânica, 
o outro, de uma coleção – Pensamento Vivo, 
O pensamento vivo de Freud. 
Meu nome está escrito – 
a mim foi dedicado. 
Foi assim que meu avô falou comigo, 
só o descobri depois, muito depois. 

Manuseio o livro amarelado, 
repleto de anotações nas margens. 
Sítio arqueológico, traz impressas 
mensagens destinadas ao futuro. 
Ao final encontro, frases soltas – 
"O eterno presente – onde o tempo não passa. 
Momento da liberdade, 
onde não há recordações do passado, 
nem as inquietações do futuro. 
Porém, a vida palpita sempre. 
Sonhada felicidade, o futuro, 
visão de esperança". 

Meu avô no sonho ria, satisfeito, os dentes lindos.

10 de jan. de 2012

Os sonhos de José Saramago

Tachibana - Ao amanhecer

"Além da conversa das mulheres, são os sonhos que seguram o mundo na sua órbita. 
Mas são também os sonhos que lhe fazem um coroa de luas, 
por isso o céu é o resplendor que há dentro da cabeça dos homens, 
se não é a cabeça dos homens o próprio e único céu"
In: Memorial do Convento

João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)