21 de set. de 2020

De amar mucho tienes a palabra de Dulce María Loynaz

Salvador Dali

De amar mucho tienes 
a palabra que persuade, 
la mirada que vence 
y que turba...

De amar mucho dejas amor
en torno tuyo, el que pasa 
cerca y se huele el perfume
en el pecho, viene a creer
que tiene la rosa dentro...


fonte: Poemas sin nombre. Letras Cubanas, 1993.

http://www.radio.uol.com.br/#/letras-e-musicas/omara-portuondo-e-maria-bethania/poema-lxiv--palabras--palavras/2349610

18 de set. de 2020

É mentira que existe a cura para a dor de perder alguém amado.:: Noemi Jaffe

 

Queremos abraçar, beijar, ver os olhos e o sorriso e não imaginar uma energia invisível.

Tudo isso parece se agravar ainda mais, quando a morte ocorre de forma rápida e inesperada, como durante essa terrível pandemia de Covid-19. Vem um abalo externo, como que do nada, arrebata alguém que nem apresentava doenças e pronto: perde-se uma mãe, um marido, um irmão, uma amiga. E tudo isso, a morte inexplicável, somado a um governo inoperante que, ainda por cima, estimula práticas que só fazem aumentar o risco. A sensação de impotência, muito forte diante da morte, fica ainda maior nesse cenário.

 

O tempo vai passando, vamos lembrando de gestos, palavras, pequenos hábitos cotidianos e reparando que, por um lado, a dor cresce e, por outro, vamos esquecendo de algumas coisas. Isso aflige o coração e o corpo e nos sentimos culpados, cansados e saudosos. Olhamos fotografias, escutamos a voz, na tentativa de reter aquilo que sempre nos escapa. Ao mesmo tempo, acompanhamos as notícias e nada muda; as estatísticas oscilam, a doença volta, a vacina se anuncia. Não sabemos de nada em todos os níveis.

 

A prática da hospitalidade, milenar, ensina que, antes de sabermos o nome do hóspede e os motivos de sua visita, é preciso acolhê-lo, dar de comer e de beber, oferecer uma boa cama e uma noite de sono para que só depois, no dia seguinte, perguntemos sobre sua origem e necessidades.

 

Penso que, com a morte, é também possível praticar a hospitalidade. Acolher a dor, dar de comer e de beber a ela, permitir que ela descanse. Acolhê-la, num primeiro momento, sem saber o que fazer com ela nem por que ela não vai embora.

Depois de um tempo recebendo-a e vendo que, em seu descanso íntimo, ela se acomodou tranquila, podemos começar a dialogar. 

 

Dor, de onde você veio, o que você quer, o que posso fazer por você? Um hóspede sempre tem uma precisão, uma carência e, de alguma forma, sempre podemos auxiliá-lo. Um dia, certamente, também nós pediremos acolhida em outra morada.

 

Não existe cura para a morte, para a dor da perda e para a impotência diante de coisas muito maiores que nós. Mas existe a hospitalidade que, uma vez praticada, com continuidade e intensidade, pode levar a uma convivência mais harmoniosa com a angústia e com outros que também sentem algo semelhante.

 

Aos poucos – e é preciso que o processo seja lento – a pessoa que partiu vai se tornando um hóspede frequente; retorna, vai embora, desaparece por uns tempos só para voltar inesperadamente. Ela mora dentro e aprendemos a conhecê-la. A impotência pode virar aprendizado e uma chance de pequenas ações – aproximar-se de outros, fazer coisas boas para quem precisa, sair de dentro de si.
 

Tempo e hospitalidade. Não curam, mas quem precisa de cura?

©2020 Santinho

15 de set. de 2020

Lista de supermercado com as coisas que acabaram (Põe na lista o refil disso aí que acabou): Paulo Cândido.




Lista de supermercado com as coisas que acabaram 
(Põe na lista o refil disso aí que acabou)

Margarina, sexo, pão 
Milho, ervilha, tesão 
Veneno de barata
E um maço de compaixão 
Cebola, carinho, cuidado
Batata, aventura e mamão 
Alguma novidade, molho de macarrão 
Uma urgência de fim de tarde
Um pacote de feijão 
Um dente afiado de alho
Um gosto por confusão 
Cerveja, vodka, whisky 
Um bom pau de amarração 
Um pedaço de alegria 
Fralda de montão 
Filé sem melancolia
E um extrato de paixão 
O detergente de mágoa 
O papel que absorve dor
Uma água com aquele cheiro 
De um sentimento anterior
sabão de lavar a alma,
alvejante de coração,
o chá de manter a calma,
o shampoo anti-depressão.
leite de longa vida,
balinhas de erudição,
spray de curar ferida,
Azeite, disposição 
Se não for estourar o cartão 
Faz um gesto de sedução 
Por fim o mais importante 
Procure em toda seção 
Se não tiver dá um jeito 
Pergunte em outro mercado
Vai catar no meio do Mato
No camelô, no interior 
Mas não  apareça de volta 
Sem amor de perdição.

Paulo Cândido. A canção da borboleta ausente.
Drops Editora, 2020

14 de set. de 2020

Esses que continuam a amar :: Fatos Arapi (poeta albanes)


Esses que não têm que comer,
Quando sonham com comida
Deixem-nos pensar em mim e em ti.
Esses que não têm fogo,
Quando sonham com o fogo
Deixem-nos pensar em mim e em ti.
Os insones deste mundo
Com os olhos abertos como a noite
No abismo das suas noites
Deixem-nos pensar em mim e em ti.
Esses que já morreram
E continuam a amar -
Deixem-nos pensar em mim e em ti.

(Versão  a partir da tradução inglesa reproduzida em Lightning from the depths - An anthology of albanian poetry; organização e tradução de Robert Elsie e Janice Mathie-Heck, Northwestern University Press, Evanston/Illinois, 2008, p. 178).

8 de set. de 2020

O tempo :: Manoel de Barros

O Tempo só anda de ida.
A gente nasce, cresce, envelhece e morre.
Pra não morrer
É só amarrar o Tempo no Poste.
Eis a ciência da poesia:
Amarrar o Tempo no Poste!

Poesia sempre, Edições 20-21.
Ministério da Cultura, Fundação Biblioteca Nacional, Departamento Nacional do Livro, 2005

7 de set. de 2020

HISTÓRIA DA PÁTRIA :: Ascenso Ferreira (1895-1965)

Plantando mandioca, plantando feijão,
colhendo café, borracha, cacau,
comendo pamonha, canjica, mingau,
rezando de tarde nossa Ave-Maria,
Negramente…
Caboclamente…
Portuguesamente…
A gente vivia.

De festas no ano só quatro é que havia:
Entrudo e Natal, Quaresma e Sanjoão!
Mas tudo emendava num só carrilhão!
E a gente vadiava, dançava, comia…
Negramente…
Caboclamente…
Portuguesamente…
Todo santo dia!

O Rei, entretanto, não era da terra!
E gente para Europa mandou-se estudar…
Gentinha idiota que trouxe a mania
de nos transformar
da noite pro dia…
A gente que tão
Negramente…
Caboclamente…
Portuguesamente…

(E foi um dia a nossa civilização tão fácil de criar!)
Passou-se a pensar,
passou-se a cantar,
passou-se a dançar,
passou-se a comer,
passou-se a vestir,
passou-se a viver,
passou-se a sentir,
tal como Paris
pensava,
cantava,
comia,
Sentia…

A gente que tão
Negramente…
Caboclamente…
Portuguesamente…
Vivia

3 de set. de 2020

A partida :: Franz Kafka

Eu ordenei que meu cavalo fosse tirado do estábulo. O servo não me entendeu. Eu fui por conta própria ao estábulo, selei meu cavalo e o montei. Ouvi na distância uma trombeta soar e perguntei a ele o que aquilo significava. Ele não sabia de nada e não tinha ouvido nada. No portão ele me parou e me perguntou:

– Para onde o senhor cavalga?
– Eu não sei – eu disse – apenas embora daqui, apenas embora daqui. Sempre adiante, embora daqui, só assim eu posso alcançar meu objetivo.
– Você conhece então seu objetivo? – ele perguntou.
– Sim – eu respondi – eu já disse: “Emboradaqui”, este é meu objetivo.
– Você não está levando nenhuma provisão de comida – ele disse.
– Eu não preciso de nenhuma. – eu disse. – A viagem é tão longa que eu devo morrer de fome se não receber nada no meio do caminho. Nenhuma provisão pode me salvar. Por sorte é mesmo uma viagem verdadeiramente imensa.

tradução: Tomaz Amorim Izabel


João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)