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1 de jun. de 2020

A palavra seda de João Cabral de Melo Neto




A atmosfera que te envolve
atinge tais atmosferas
que transforma muitas coisas
que te concernem, ou cercam.
E como as coisas, palavras
impossíveis de poema:
exemplo, a palavra ouro,
e até este poema, seda.
É certo que tua pessoa
não faz dormir, mas desperta;
nem é sedante, palavra
derivada da de seda.
E é certo que a superfície
de tua pessoa externa,
de tua pele e de tudo
isso que em ti se tateia,
nada tem da superfície 
luxuosa, falsa, acadêmica,
de uma superfície quando
se diz que ela é “como seda”.
Mas em ti, em algum ponto,
talvez fora de ti mesma, 
talvez mesmo no ambiente
que retesas quando chegas,
há algo de muscular,
de animal, carnal, pantera,
de felino, da substância
felina, ou sua maneira,
de animal, de animalmente,
de cru, de cruel, de crueza, que sob a palavra gasta
persiste na coisa seda.

João Cabral de Melo Neto In: Quaderna, 1956-1959

10 de jun. de 2019

As Palavras de Eugénio de Andrade (1923-2005)

Toyota Hokkei

São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?


23 de jun. de 2016

As experiências da vida são experiências de palavra :: Graciela Chamorro

A palavra é a unidade mais densa que explica como se trama a vida para os povos chamados Guarani e como eles imaginam o transcendente. As experiências da vida são experiências de palavra. Deus é palavra. (...) O nascimento, como o momento em que a palavra se senta ou provê para si um lugar no corpo da criança. A palavra circula pelo esqueleto humano. Ela é justamente o que nos mantém em pé, que nos humaniza. (...) Na cerimônia de nominação, o xamã revelará o nome da criança, marcando com isso a recepção oficial da nova palavra na comunidade. (...) As crises da vida – doenças, tristezas, inimizades etc. – são explicadas como um afastamento da pessoa de sua palavra divinizadora. Por isso, os rezadores e as rezadoras se esforçam para ‘trazer de volta’, ‘voltar a sentar’ a palavra na pessoa, devolvendo-lhe a saúde.(...) Quando a palavra não tem mais lugar ou assento, a pessoa morre e torna-se um devir, um não-ser, uma palavra-que-não-é-mais. (...) Ñe'ẽ e ayvu podem ser traduzidos tanto como ‘palavra’ como por ‘alma’, com o mesmo significado de ‘minha palavra sou eu’ ou ‘minha alma sou eu’. (...) Assim, alma e palavra podem adjetivar-se mutuamente, podendo-se falar em palavra-alma ou alma-palavra, sendo a alma não uma parte, mas a vida como um todo.
CHAMORRO, Graciela. 2008. Terra MaduraYvy Araguyje: fundamentos da palavra guarani. Dourados: Editora UFGD. p. 56

16 de dez. de 2015

Uma palavra pode salvar uma manhã :: Ana Estaregui (1987, Sorocaba )

 Ellsworth Kelly

em algum lugar leio a palavra monóxido.
e durante a manhã fico pensando nela
como se fosse sólida
fico amando ela e ela me deixa bem (talvez me ame)
gosto de saber que existe essa palavra: monóxido
pra mim ela é inteira feita de titânio e pesa
tanto
que nem cimento e mesmo sendo gasosa
assenta as páginas brancas
das coisas que nem foram escritas ainda

9 de jul. de 2015

Conserto a palavra com todos os sentidos em silêncio :: Daniel Faria

Street Light - Giacomo Balla,
1909
Conserto a palavra com todos os sentidos em silêncio
Restauro-a
Dou-lhe um som para que ela fale por dentro
ilumino-a

Ela é um candeeiro sobre a minha mesa
Reunida numa forma comparada à lâmpada
A um zumbido calado momentaneamente em enxame

Ela não se come como as palavras inteiras
Mas devora-se a si mesma e restauro-a
A partir do vómito
Volto devagar a colocá-la na fome

Perco-a e recupero-a como o tempo da tristeza
Como um homem nadando para trás
E sou uma energia para ela

E ilumino-a




homens que são como lugares mal situados

9 de jun. de 2015

Gosto de dizer:: Fernando Pessoa (Bernardo Soares)


Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie - nem sequer mental ou de sonho -, transmudou-se-me o desejo para aquilo que em mim cria ritmos verbais, ou os escuta de outros. Estremeço se dizem bem. Tal página de Fialho, tal página de Chateaubriand, fazem formigar toda a minha vida em todas as veias, fazem-me raivar tremulamente quieto de um prazer inatingível que estou tendo. Tal página, até, de Vieira, na sua fria perfeição de engenharia sintáctica, me faz tremer como um ramo ao vento, num delírio passivo de coisa movida.

Como todos os grandes apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em que o gozo da entrega se sofre inteiramente. E, assim, muitas vezes, escrevo sem querer pensar, num devaneio externo, deixando que as palavras me façam festas, criança menina ao colo delas. São frases sem sentido, decorrendo mórbidas, numa fluidez de água sentida, esquecer-se de ribeiro em que as ondas se misturam e indefinem, tornando-se sempre outras, sucedendo a si mesmas. Assim as ideias, as imagens, trémulas de expressão, passam por mim em cortejos sonoros de sedas esbatidas, onde um luar de ideia bruxuleia, malhado e confuso.

fonte: http://arquivopessoa.net/textos/

9 de fev. de 2015

Canção III - Hilda Hilst

Giacomo Balla

A minha Casa é guardiã do meu corpo 
E protetora de todas minhas ardências. 
E transmuta em palavra 
Paixão e veemência 
E minha boca se faz fonte de prata 
Ainda que eu grite à Casa que só existo 
Para sorver a água da tua boca. 
A minha Casa, Dionísio, te lamenta 
E manda que eu te pergunte assim de frente: 
À uma mulher que canta ensolarada 
E que é sonora, múltipla, argonauta
Por que recusas amor e permanência?



Fonte:  Poesia: 1959-1979. Quíron; INL, 1980.

12 de nov. de 2014

Exploro os mistérios irracionais :: Manoel de Barros



"Exploro os mistérios irracionais dentro de uma toca que chamo 'lugar de ser inútil'. Exploro há 60 anos esses mistérios. Descubro memórias fósseis. Osso de urubu, etc. Faço escavações. Entro às 7 horas, saio ao meio-dia. Anoto coisas em pequenos cadernos de rascunho. Arrumo versos, frases, desenho bonecos. Leio a Bíblia, dicionários, às vezes percorro séculos para descobrir o primeiro esgar de uma palavra. E gosto de ouvir e ler "Vozes da Origem". Gosto de coisas que começam assim: "Antigamente, o tatu era gente e namorou a mulher de outro homem". Está no livro "Vozes da Origem", da antropóloga Betty Mindlin. Essas leituras me ajudam a explorar os mistérios irracionais. Não uso computador para escrever. Sou metido. Sempre acho que na ponta de meu lápis tem um nascimento."
fonte: entrevista concedida a José Castello, do jornal "O Estado de São Paulo", em agosto de 1996, ao ser perguntado sobre qual sua rotina de poeta

5 de nov. de 2014

SIMPLES NA SAUDAÇÃO :: GEORGINA HERRERA (Jovellanos, Matanzas,Cuba 1936)

 Ito Shinsui

— Oi — diz o homem.
Eu sorrio.
Toca em meus nervos algo
como se um vento lamentável
soprasse suavemente.
— Oi —  insiste. Breve
e simples é a saudação.
Sou o avesso de tudo o que vive.
Me calo.  Que palavra
ou que gestos alçar, como resposta
a quem um tempo atrás
(não muito)
apenas com a mão e sua palavra
me tornou tempestade?
Tanto não foi o tempo deslizado
desde então
e...
lembra ou não este homem
quando eu era tempestade
sob sua mão e sua palavra?

.......................

SIMPLE EN EL SALUDO

— Hola — dice el hombre.
Yo sonrío.
Toca en mis nervios algo
como si un viento lamentable
soplara suavemente.
— Hola — insiste.  Breve
y simple es el saludo.
Soy el revés de todo lo que vive.
Callo. ¿Qué palabra
o qué gesto alzar, como respuesta
a quien un tiempo atrás
(no mucho)
tan solo con su mano y su palabra
me volvió tempestad?
Tanto no ha sido el tiempo deslizado
desde entonces
y...
¿recuerda o no este hombre
cuando fui tempestad
bajo su mano y su palabra?

23 de out. de 2014

Caixa de fósforos :: Laura Esquível

foto: Carlos Porto
A minha avó tinha uma teoria muito interessante, dizia que embora todos nasçamos com uma caixa de fósforos no nosso interior, não os podemos acender sozinhos, precisamos (...) de oxigénio e da ajuda de uma vela. Só que neste caso o oxigénio tem de vir, por exemplo, do hálito da pessoa amada; a vela pode ser qualquer tipo de alimento, música, carícia, palavra ou som que faça disparar o detonador e assim acender um dos fósforos (...). Cada pessoa tem de descobrir quais são os seus detonadores para poder viver, pois a combustão que se dá quando um deles se acende é que alimenta a alma de energia.

17 de out. de 2014

A FRONTEIRA DO DIZER : HORÁCIO COSTA (São Paulo -1954)

Pasieka  
- Conecta com isso.
E é uma pedra.
- Conecta com isso.
É terra.
- Conecta com isso.
É nuvem. Tem forma de dragão.
- Conecta com isso.
É onda. Tem forma de onda.
- Conecta com isso.
É chip. Parece Shangri-lah.

Não é sílica. Nem silêncio. Nem palavra.
Conecta com isso.


9 de out. de 2014

Meu Avô :: Manoel de Barros

Odilon Redon

Meu avô dava grandeza ao abandono.
Era com ele que vinham os ventos a conversar
Sentava-se o velho sobre uma pedra nos fundos 
do quintal
E vinham as pombas e vinham as moscas a
conversar.
saia do fundo do quintal para dentro da
casa
E vinham os gatos a conversar com ele.
Tenho certeza que o meu avô enriquecia
a palavra abandono.
Ele ampliava a solidão dessa palavra.
e as borboletas se aproveitavam dessa
amplidão para voar mais longe.

23 de dez. de 2013

Caminho de Guimarães Rosa

Anna Silivonchik

Fiz o caminho. Sem tomar direção, sem saber do caminho. 
Pé por pé, pé por si. Deixei que o caminho me escolha. 
Na travessia, só silêncio. O nenhuns-nada. 
O alegre, mesmo, era a gente viver devagarinho, miudinho, 
não se importando demais com coisa nenhuma. 
Nessa estrada, salvou-me a palavra. 


23 de nov. de 2013

Os três estados da escritura de Blaise Cendrars


Primeiro, um estado de pensamento. Viso o horizonte, agarro os pensamentos a voar, engaiolo-os inteiramente vivos, a esmo, rapidamente e aos montes, estenografia. Segundo, um estado de estilo. Separo meus pensamentos, escolho-os, endireito-os, eles correm empenachados nas frases, caligrafia. Terceiro, um estado de palavra. Correção, preocupação com o detalhe novo, o termo justo, exato, a estalar como uma chicotada e que faz que o pensamento empine, tipografia.

CENDRARS, Blaise. "Les trois états de l'écriture". In: CENDRARS, Miriam. Blaise Cendrars: L'or d'un poète. Paris: Gallimard, 1996.

16 de nov. de 2013

A palavra foi feita para dizer de Graciliano Ramos


Kathy Jennings

Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar.
Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer.

Graciliano Ramos em entrevista concedida em 1948, Casa de Graciliano Ramos, Palmeira dos Índios.

22 de out. de 2013

A quem se fala quando se escreve ::Edmond Jabès

- A quem se fala quando se escreve?
- A um ser acerca de quem nunca se venha a saber se é si mesmo ou um outro.
- Fala-se a um desconhecido?
- Seria absurdo dizer dessa maneira, porém, é a única coisa que podíamos dizer: não se dirigir a ninguém, quando se fala, talvez seja falar apenas consigo mesmo; mas como falar consigo sem imediatamente fazer de si um outro?
- Sobretudo porque nós somos, nós, esse outro.
- Não estou dizendo isso . Você não me compreendeu, ou, fui eu que não me fiz compreender. Esse outro não é eu mesmo, nem minha invenção. Ele é minha descoberta do outro em mim.
Esboçar o perfil de uma palavra numa folha já é estabelecer uma conversa com a página branca.
Tudo o que vemos, escutamos, tudo do que nos aproximamos, uma vez reconhecido, entra em diálogo conosco.
O livro seria, assim, apenas o espaço circunscrito pela palavra aberta à palavra. Não somos escritos onde ela se escreve, mas inscritos onde ela se apaga.
Há uma linguagem própria que a inscrição tumular nos impõe e nos força ao silêncio. Pesado silêncio em busca de um signo.
Ah! outro - homem, mundo, Deus - mais nós mesmos do que poderíamos sê-lo no segredo de nossas confissões; palavra de uma palavra à qual não ousamos ligar nosso nome; pois se somos tributários dela, ela, contrariamente, mais nos escapa do que nos pertence.
Brancura, brancura de sangue. Séculos de orgulho e de derrotas jazem no vocábulo. Você os desperta ao revelá-lo.
Um livro se entreabre quando nos abandonamos.

tradução: Caio Meira

2 de out. de 2013

O seu santo nome de Carlos Drummond de Andrade



Não facilite com a palavra amor.
Não a jogue no espaço, bolha de sabão.
Não se inebrie com o seu engalanado som.
Não a empregue sem razão acima de toda a razão ( e é raro).
Não brinque, não experimente, não cometa a loucura sem remissão
de espalhar aos quatro ventos do mundo essa palavra
que é toda sigilo e nudez, perfeição e exílio na Terra.
Não a pronuncie.

14 de jun. de 2013

Uma palavra morre de Emily Dickinson

A palavra morre
Quando é dita,
Alguém diz.
Eu digo que ela começa
A viver
Naquele dia.
..........................................
A palavra morre 
no momento em que é proferida
- dizem alguns. 
Eu digo que ela começa
a viver 
naquele momento.
.......................
Uma palavra morre
Quando é dita -
Dir-se-ia -
Pois eu digo
Que ela nasce
Nesse dia.

tradução: Aíla de Oliveira
.............................................

Palavra é morta
Quando está dita,
Dizem uns.
Digo: inicia
A só viver
Em tal dia.

tradução:José Lino Grunewald 
.....................................

Uma palavra morre
Quando falada
Alguém dizia.
Eu digo que ela nasce
Exatamente
Nesse dia.

tradução: Idelma Ribeiro de Faria
.....................

A word is dead
When it is said,
Some say.
I say it just
Begins to live
That day. 

30 de mai. de 2013

Lição de gramática de Berta Piñan

Como se diz em ouolof a palavra fronteira, a palavra
pátria? E em soniké, como designareis o desamparo?
Se quiserdes dizer em berbere, por exemplo, "eu tive uma casa
num arrabalde de Rabat", poreis a frase nesta ordem? Como
se conjugam em bambara os verbos que conduzem ao norte,
que adjectivos se devem acrescentar à palavra mar, à palavra morte?
Se tiverdes de partir, a palavra adeus será um substantivo?
Como se pronuncia em diakhanké a palavra exílio? Há que
juntar os lábios? Doem? Que pronomes usais para aquele que espera
na praia, para o que regressa sem nada? Quando apontais para além, no sentido
de casa, que advérbio escolheis? Como se diz na vossa, na nossa língua
a palavra futuro?

14 de mai. de 2013

Estou aqui sentado - ali o mar, as palmeiras de Eugénio de Andrade

foto: joerg lehmann

"Estou aqui sentado - ali o mar,
as palmeiras.
O leite fresco, o pão na mesa.
O gesto sempre igual
da luz, o mesmo olhar da ave.
Existe uma secreta harmonia
entre a luz e o mar,
a mesma provavelmente
entre a palmeira e a ave,
o leite e o pão.
E com a palavra, o seu
voo a prumo,
com a palavra qual é a relação?"

Eugénio de Andrade, "O Sal da Língua" in Poesia, 2ª ed., Porto, Fundação Eugénio de Andrade, 2005, pp 514-515.

João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)