Mostrando postagens com marcador Espaços. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Espaços. Mostrar todas as postagens

27 de abr. de 2015

Um poema de Chagall :: Marc Chagall Um poema de Chagall Marc Chagall (7 de julho de 1887 — 28 de março de 1985)

Chagall

Só é meu
O país que trago dentro da alma.
Entro nele sem passaporte
Como em minha casa.
Ele vê a minha tristeza
E a minha solidão.
Me acalanta.
Me cobre com uma pedra perfumada.

Dentro de mim florescem jardins.
Minhas flores são inventadas.
As ruas me pertencem
Mas não há casas nas ruas.
As casas foram destruídas desde a minha infância.
Os seus habitantes vagueiam no espaço
À procura de um lar.
Instalam-se em minha alma.
Eis porque sorrio
Quando mal brilha meu sol.
Ou choro
Como uma chuva leve
Na noite.

Houve tempo em que eu tinha duas cabeças.
Houve tempo em que essas duas caras
Se cobriam de um orvalho amoroso.
Se fundiam como o perfume de uma rosa.

Hoje em dia me parece
Que até quando recuo
Estou avançando
Para uma alta portada
Atrás da qual se estendem muralhas
Onde dormem trovões extintos
E relâmpagos partidos.
Só é meu
O mundo que trago dentro da alma.


Tradução: Manuel Bandeira

18 de abr. de 2015

SÃO PAULO - PASSAGENS :: CAMILO THOMÉ :: XILOGRAVURA

















Walter Benjamin refere-se a Paris como uma cidade escrita. Pode-se percorrê-la e buscar em seus capítulos um mapa dentro do mapa. A cidade se dá aos olhos, e a todos os sentidos, como pura fruição, mesmo que misteriosa.
São Paulo, não. Cidade-esboço, sem descartar o mistério, sempre reconquistada e perdida, não se concretiza à nossa frente. Como se pudesse existir uma argamassa de vapor a construí-la, densa e frágil, que ao ser observada já se desfaz. Grande Esfinge abaixo do Equador.
As xilogravuras de Camilo Thomé, me parece, enfrentam este olhar oblíquo. Mesmo que bem talhadas, recusam a impressão habitual e buscam um modo mais bruto, paradoxalmente evanescente, de se apresentar. São de uma solidez inconclusa. Paisagem sem horizonte, que de tantos não o tem,são a visão do andarilho perplexo e fascinado pelos espaços quase inapreensíveis. No Planalto de Piratininga toda a cartografia é inútil.

Cláudio Mubarac. Paris, primavera de 1999

18 de mar. de 2015

Vive : Fernando Pessoa

Felix Vallotton
Vive, dizes, no presente,
Vive só no presente.

Mas eu não quero o presente, quero a realidade;
Quero as coisas que existem, não o tempo que as mede.

O que é o presente?
É uma coisa relativa ao passado e ao futuro.
É uma coisa que existe em virtude de outras coisas existirem.
Eu quero só a realidade, as coisas sem presente.

Não quero incluir o tempo no meu esquema.
Não quero pensar nas cousas como presentes; quero pensar
nelas como coisas.
Não quero separá-las de si-próprias, tratando-as por presentes.

Eu nem por reais as devia tratar.
Eu não as devia tratar por nada.

Eu devia vê-las, apenas vê-las;
Vê-las até não poder pensar nelas,
Vê-las sem tempo, nem espaço,
Ver podendo dispensar tudo menos o que se vê. 
É esta a ciência de ver, que não é nenhuma.

Poemas Inconjuntos

In: Fernando Pessoa – Antologia Poética. 
Editora Ulisses


17 de dez. de 2014

Sair :: Antonio Cícero

Vasile Dobrian

Largar o cobertor, a cama, o
medo, o terço, o quarto, largar
toda simbologia e religião; largar o
espírito, largar a alma, abrir a
porta principal e sair. Esta é
a única vida e contém inimaginável
beleza e dor. Já o sol,
as cores da terra e o
ar azul — o céu do dia —
mergulharam até a próxima aurora; a
noite está radiante e Deus não
existe nem faz falta. Tudo é
gratuito: as luzes cinéticas das avenidas,
o vulto ao vento das palmeiras
e a ânsia insaciável do jasmim;
e, sobre todas as coisas, o
eterno silêncio dos espaços infinitos que
nada dizem, nada querem dizer e
nada jamais precisaram ou precisarão esclarecer.


19 de set. de 2014

SCHWEIZER HOF HOTEL :: Manuel António Pina

 Maria Helena Vieira da Silva, 1981

Já aqui estive, já fiz esta viagem,
e estive neste bar neste momento
e escrevi isto diante deste espelho
e da minha imagem diante da minha imagem.

Não mudou nada, nem eu próprio; a mão
escreve os mesmos versos no papel obscuro.
Que aconteceu então fora de tudo?
De que esquecimento se lembra o coração?

Algum passado, alguma ausência,
se passam talvez a meu lado,
talvez tudo exista exilado
de alguma verdadeira existência.

E eu, os versos, o bar, o espelho,
sejamos só imagens noutro espelho
diante de algum Deus em cujo lasso
olhar se fundem outro e mesmo, tempo e espaço.


(n. 1943) Poesia Reunida. Assírio & Alvim, 2001

24 de jul. de 2014

ENVELOPE COM FOTOGRAFIAS :: TJISKE JANSEN nasceu em Barneveld, Holanda, em 1971.

Helen von Borstel.

Tal como o mar me consola com a sua profundeza
porque não consigo contar a água,
pois é maior que toda a terra
por onde as pessoas andam,
porque há peixes a quem esse espaço pertence,
pois ele não é das pessoas,

consola-me não me recordar de lá ter estado,
ter feito isto ou aquilo,
daquele bibe, ou daquele vestido,
daquelas meias até ao joelho, ao lado daquela miúda,
ao colo do senhor com a guitarra,
ao colo da avó quando tinha sete meses.

E nos momentos dos quais não há fotografias,
também lá ter estado.

6 de jun. de 2014

Faça de Conta :: Isabel Machado

Oswaldo Guayasamin

Faça de conta 
que a vida é curta 
e o tempo não nos pertença 
para assim sorver cada minuto 
como último 
e cada sonho 
como eterno... 
Faça de conta 
que não há limites
entre espaços 
quando abraços - em costas 
são sentidos à léguas... 
Faça de conta 
que o desejo nunca morre 
não dá trégua 
não pede água 
e só não é eterno 
para viver mais 
em clima de paixão..

27 de abr. de 2014

Heraclito, o Obscuro de Hélio Pellegrino


Klaus Tiedge.


A pedra se move menos que a planta.

A planta se move menos que o réptil, movendo-se sobre a

pedra.

O réptil se move menos que o leopardo, na espessura da

floresta.

O leopardo se move menos que o homem, faminto de

mundo e espaço.

Todo ser, ao mover-se, exprime o seu desassossego: arco

tendido na direção do vir-a-ser.

A pedra tem mais sossego que a planta.

A planta tem mais repouso que o réptil.

O réptil é mais sonolento que o leopardo.

O homem, este é pura insônia — trabalho futuro, vôo e flecha.

14 de jan. de 2012

A mulher e a casa de João Cabral de Melo Neto



Tua sedução é menos
de mulher do que de casa:
pois vem de como é por dentro
ou por detrás da fachada.

Mesmo quando ela possui
tua plácida elegância,
esse teu reboco claro,
riso franco de varandas,

uma casa não é nunca
só para ser contemplada;
melhor: somente por dentro
é possível contemplá-la.

Seduz pelo que é dentro,
ou será, quando se abra;
pelo que pode ser dentro
de suas paredes fechadas;

pelo que dentro fizeram
com seus vazios, com o nada;
pelos espaços de dentro,
não pelo que dentro guarda;

pelos espaços de dentro:
seus recintos, suas áreas,
organizando-se dentro
em corredores e salas,

os quais sugerindo ao homem
estâncias aconchegadas,
paredes bem revestidas
ou recessos bons de cavas,

exercem sobre esse homem
efeito igual ao que causas:
a vontade de corrê-la
por dentro, de visitá-la.

Melo Neto, João Cabral de. Antologia Poética. 4ª edição. Rio de Janeiro, José Olympio, 1978.

João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)