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16 de fev. de 2015

O habitante:: Mia Couto

(ao meu pai)

Se partiste, não sei. 
Porque estás, 
tanto quanto sempre estiveste.

Essa tua, 
tão nossa, presença 
enche de sombra a casa 
como se criasse, 
dentro de nós, 
uma outra casa.

No silêncio distraído 
de uma varanda 
que foi o teu único castelo, 
ecoam ainda os teus passos
feitos não para caminhar
mas para acariciar o chão.

Nessa varanda te sentas 
nesse tão delicado modo de morrer 
como se nos estivesse ensinando 
um outro modo de viver.

Se o passo é tão celeste
a viagem não conta
senão pelo poema que nos veste.

Os lugares que buscaste
não têm geografia.

São vozes, são fontes,
rios sem vontade de mar,
tempo que escapa da eternidade.

Moras dentro, 
sem deus nem adeus.

fonte: Vagas e lumes. Editorial Caminho, 2014. 

22 de out. de 2014

Caricia :: Mario Benedetti

Fernand Khnopff
1
La caricia es un lenguaje
si tus caricias me hablan
no quisiera que se callen

2
La caricia no es la copia
de otra caricia lejana
es una nueva versión
casi siempre mejorada

3
Es la fiesta de la piel
la caricia mientras dura
y cuando se aleja deja
sin amparo a la lujuria

4
Las caricias de los sueños
que son prodigio y encanto
adolecen de un defecto
no tienen tacto

5
Como aventura y enigma
la caricia empieza antes
de convertirse en caricia

6
Es claro que lo mejor
no es la caricia en sí misma
sino su continuación

29 de jun. de 2013

Eucanaã Ferraz, "Carícia"


Chagall, 1931

Demore-se no carinho,
de modo que no rosto do outro
vá a mão como se não fora
voltar. Repita,

demorando-se mais,
de modo que a mão descanse
naquele rosto, como se,
e se esqueça de que.

Repita, demore-se no carinho
como se a mão desse adeus,
agarrada ao rosto que se vai.
Outra vez: repita,

demorando-se mais
e mais, como se a mão bebesse
daquele rosto para, saciada, dormir
ali mesmo, ao pé da fonte.

7 de fev. de 2012

A marca da solidão de Heloisa Seixas


No côncavo das palmas, o homem segurou com cuidado o gatinho. Observou-o enquanto ele se debatia. Mexia as patinhas dianteiras e traseiras, mas sem muita convicção, apenas mostrando disposição de brincar e não dando qualquer sinal de impaciência ou alarme. Assim, entre suas mãos, tão pequeno que era, com a barriga para cima, lembrava um bebê que, deitado no berço, agitasse mãos e pés tentando alcançar algum móbile suspenso. O homem sorriu.

Em seguida, sentando-se no sofá, acariciou o corpo do gato, pouco maior do que sua mão. O bichinho acalmou-se, de repente. Ficou imóvel, os olhos quase cerrados, parecendo saborear o momento de ternura. Tão pequeno e o animal já parecia dar valor a uma carícia. Era natural, pensou o homem. Afinal, fora abandonado na rua. E agora, por entre suas mãos calosas, aquele ser tão frágil era uma presença inesperada, subversiva, surpreendente. Os gatos precisam ser acariciados quando pequenos, lembrou ele, principalmente se tiverem sido separados da mãe muito cedo. Caso contrário, quando adultos podem tornar-se medrosos, tímidos ou mesmo agressivos.

E de repente o sorriso do homem cessou.

Por associação de ideias, pensou em um livro que acabara de ler, um livro antigo, esquecido havia muito, e que por acaso apanhara outro dia na estante. Era um livro de José Carlos de Oliveira, chamado O pavão desiludido, em que o cronista relatava os horrores de sua infância. Havia uma passagem, logo no início, em que Carlinhos de Oliveira contava como ele, menino miserável, faminto e cheio de vermes, um dia, apanhando água na bica, recebera da irmã um presente: um arco-íris. ''Olhei e vi o arco-íris na água aberta em leque sob o céu azul. O sol devia estar criando uma ilusão, mas o que eu via era o milagre da multiplicação das lágrimas coloridas onde antes só havia lágrimas''. Mais adiante, o cronista falava de como ficara marcado pela infância difícil e sobre a relação terrível que tivera com a mãe: ''Quando se cria um abismo assim entre duas pessoas da mesma família, sendo uma delas criança, mais tarde se verifica que nem todo o amor do mundo daria para encher o buraco''.

E, voltando a olhar o gatinho, que agora dormia, o homem sorriu um sorriso triste. Assim como Carlinhos, ele próprio tivera uma infância infeliz. E assim como aquele filhote que tinha nas mãos, também fora deixado para trás, num certo sentido. Para o pequeno animal, ainda havia salvação. Mas para ele - como fora talvez para o escritor - era tarde.

Suspirou. Sabia bem. Trazia uma nódoa indelével, o estigma daqueles a quem faltou, na hora exata, a carícia necessária. Trazia, no corpo e na alma, a marca da solidão.

7 de abr. de 2007

Carta de Frida Kahlo a Diego


Carta de Frida Kahlo a Diego

Querido Diego,

A grande verdade é que já não quisera nem falar, nem dormir, nem ouvir, nem querer. Sentir-me encerrada, sem medo do sangue, sem tempo nem magia, dentro de teu mesmo medo e dentro de tua grande angústia e na mesma batida do teu coração. Toda esta loucura, se te pedisse, já seria para teu silêncio somente confusão. Te peço violência na irracionalidade e tu me dás graças, tua luz e calor. Pintar-te quisera, porém não há cores, por havê-las tantas, em minha confusão, a forma concreta do meu grande amor.

O que os meus olhos vêem e que toco comigo mesma, desde todas as distâncias é Diego. A carícia das telas, a cor do calor, os arames, os nervos, os lápis, as células e o sol, tudo o que se vive nos minutos dos não-relógios, dos não-calendários e dos não olhares vazios, é ele, Diego…
Tu te chamarás Auxocromo, o que capta a cor, eu, Cromoforo, o que dá a cor. Tu és todas as combinações, todos os números. És a vida. Meu desejo é entender a linha, a forma, a sombra, o movimento. Tu transbordas e eu recebo. Tua palavra percorre o espaço e chega às minhas células, são meus astros que vão aos teus astros, que são a minha luz…
Ninguém saberá jamais como quero a Diego. Não quero que nada o machuque, que nada o moleste ou lhe tire a energia que ele necessita para viver. Viver da maneira como ele quiser. Pintar, ver, amar, comer, dormir, sentir-se sozinho, sentir-se acompanhado, porém nunca quisera que estivesse triste. Se eu tivesse saúde, quisera dá-la toda, se eu tivesse juventude, toda ela poderia tomar. Não sou louca, mãe, sou embrião, gérmen, a primeira céluda que, potencialmente, o gerou.
Sou ele desde as mais primitivas…e as mais antigas células que com o tempo se tornaram ele.
Se tão somente tivesse a meu lado tua carícia, como à terra o ar se lhe dá, a realidade de tua pessoa me faria mais alegre, me afastaria do sentimento que me enche de cinza. Nada já seria em mim tão fundo, tão final. Porém, como lhe explico minha necessidade enorme de ternura…minha solidão de anos…minha estrutura disforme por ser sem harmonia, por ser inadaptada. Eu creio que é melhor ir-me…ir-me…que tudo passe num instante…oxalá!


Nunca vi ternura maior do que a que Diego tem e quando suas maõs e seus belos olhos tocam as esculturas do México índio.
Nada comparável às tuas mãos nem nada igual ao ouro verde de teus olhos. Meu corpo se enche de ti por dias e dias. És o espelho da noite, a luz violeta do relâmpago, a umidade da terra. O côncavo de tuas axilas é meu refúgio. Minhas gemas tocam teu sangue. Toda minha alegria é sentir brotar tua vida de tua fonte-flor, que a minha guarda para encher todos os caminhos de meus nervos, que são os teus.
Afortunadamente, as palavras se foram fazendo…O que lhes deu a “verdade” absoluta? Nada é absoluto. Tudo se altera, tudo se move, tudo revoluciona – tudo volta e se vai…
Criança minha – da grande ocultadora. São seis horas da manhã e os guajulotes cantam, calor de humana ternura. Solidão acompanhada. Jamais, em toda a minha vida, esquecerei de tua presença. Me acolhestes destroçada e me devolvestes inteira. Nesta pequena terra, onde porei o olhar? Tão imensa, tão profunfa! Já não há tempo, já não há nada, distância.

Há somente realidade. O que se foi, foi para sempre! O que é, são as raizes que se assomam transparentes, transformadas. A árvore frutífera inteira. Teus frutos já dão seus aromas, tuas flores dão cor crescendo com a alegria do vento e da flor. Nome de Diego – nome de amor. Não deixeis que dê sede à árvore que tanto te amou, que guardou tua semente, que cristalizou tua vida às seis da manhã. Não deixeis que dê sede à árvore da qual és sol. És Diego, nome de amor. Não vale mais do que o riso.
É necessário rir e abandonar-se, ser ligeiro. A tragédia é o mais ridículo que tem o homem. Estou certa que os animais ainda que sofram não exibem suas penas em “teatros” abertos nem fechados (“os lares”). Sua dor é mais certa do que qualquer imagem que possa cada homem representar como dolorosa. Eu quisera poder ser o que quisesse – atrás da cortina da loucura, arranjaria as flores, todo o dia, pintaria a dor, o amor e a ternura, riria da estupidez dos outros e todos rirão: pobre, está louca! (Sobretudo riria da minha estupidez.)

Construiria meu mundo e enquanto vivesse estaria de acordo com todos os mundos. O dia ou a hora e o minuto que vivesse, seriam meus e de todos. Minha loucura não seria um escape do trabalho para que me mantiveram com seu labor.
A revolução é a harmonia da forma e da cor e tudo está e se move sob uma única lei: a vida. Ninguém se aparta de ninguém. Ninguém luta por si mesmo. Tudo é tudo e um. A angústia e a dor e o prazer e a morte não são mais que um processo para existir. A luta revolucionária neste processo é a porta aberta à inteligência. Diego, estou só. Diego, já não estou só. Tu me acompanhas, tu me adormeces, tu me animas. Árvore da esperança, mantenha-se firme…árvore da esperança, mantenha-se firme.
Ninguém é mais que um funcionamento ou uma função total. A vida passa e dá caminhos que não se percorrem em vão. Porém, ninguém pode deter-se livremente a brincar pelo caminho, porque retarda ou transforma a viagem atômica e geral. Dali vem o descontentamento, a desesperança, a tristeza.

Todos queríamos a soma e não o elemento número. As mudanças e a luta nos desconcertam, nos aterram por constantes e por certos, buscamos a calma e a “paz” porque nos antecipamos à morte, que morremos a cada segundo. Os opostos que se unem e nada novo nem arrítimico descobrimos. Nos amparamos, nos alarmamos no irracional, no mágico, no anormal, por medo da extraordinária beleza do certo, do material e do dialético, do são e forte.
Gostamos de ser enfermos para nos protegermos. Alguém – algo – nos protege sempre da verdade – nossa própria ignorância e nosso medo. Medo de tudo: medo de saber que não somos outra coisa que vetores – direção, construção e destruição para sermos vivos e sentirmos a angústia de esperar pelo minuto seguinte e participar na corrente completa de não saber que nos dirigimos a nós mesmos.
Variedade de pedras, de seres-aves, de seres-astros, de seres-micróbios, de seres-fontes, a nós mesmos. Variedade de um, incapacidade de escapar a dois, a três, o et cétera de sempre para regressar ao um. Porém, não a soma (chamada às vezes Deus, às vezes liberdade, às vezes amor).
Não somos ódio-amor-filho-planta-terra-luz-raio. et cétera de sempre. Mundana dor dos mundos, universos e células-universos. Tudo é tudo e um. A angústia e a dor, o prazer e a morte não são mais que um processo para existir.
Me amputaram a perna há seis meses, pareceram-me séculos de tortura e em momentos quase perdi a “razão”. Sigo sentindo vontade de suicidar-me. Diego é ele que me detém por crer que lhe possa fazer falta. Ele me disse e eu creio. Porém, nunca na vida sofri mais. Esperarei um tempo…espero alegre a saída e espero não voltar jamais.

Frida Kahlo

João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)