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9 de out. de 2014

Meu Avô :: Manoel de Barros

Odilon Redon

Meu avô dava grandeza ao abandono.
Era com ele que vinham os ventos a conversar
Sentava-se o velho sobre uma pedra nos fundos 
do quintal
E vinham as pombas e vinham as moscas a
conversar.
saia do fundo do quintal para dentro da
casa
E vinham os gatos a conversar com ele.
Tenho certeza que o meu avô enriquecia
a palavra abandono.
Ele ampliava a solidão dessa palavra.
e as borboletas se aproveitavam dessa
amplidão para voar mais longe.

18 de mar. de 2014

Lembrar é essencial :: Marcia Tiburi

O homem é o animal que lembra. Podemos dizer isso tendo em conta que não haveria, de um modo geral, a cultura, sem o trabalho da memória. Definir o que é a memória, porém, não é fácil. Os cientistas tentam explicá-la afirmando seu funcionamento físico-químico em nível cerebral. Os historiadores criam suas condições gráficas por meio de documentos e provas, definem, com isso, uma linguagem compreensível sobre o que ela seja: o que podemos chamar de “campo da memória”. Os artistas e escritores tentam invocar seus subterrâneos, aquilo que, mesmo sem sabermos, constitui nosso substrato imagético e simbólico. Mas o que é a memória para cada um de nós que, em tempos de excesso de informação, de estilhaçamento de sentidos, experimenta o fluxo competitivo do cotidiano, a rapidez da vida, como se ela não nos pertencesse? Como fazemos a experiência coletiva e individual da memória? É possível lembrar? Lembrar o quê? Devemos lembrar?

Se esta pergunta é possível, a contrária também tem validade: haverá algo que devamos esquecer?

A memória é um enigma

Para os antigos gregos Mnemósyne era a deusa da memória, a mãe das nove musas que inspiravam os poetas, os músicos, os bailarinos. Seu simbolismo define que a memória precisa ser criada pelas artes. Numa civilização oral como foi a grega nada mais compreensível do que uma divinização da memória. A memória é a mãe das artes, tanto quanto nelas se reproduz, por meio delas é que mantém sua existência. Por isso, ela presidia a poesia, permitindo ao poeta saber e dizer o que os humanos comuns não sabiam. Que a memória seja mãe das musas significa que a lembrança é a mãe da criatividade. Mas de que lembrança se está tratando?

Para além da mitologia, na filosofia, distinguiam-se dois modos de rememoração: Mneme, espécie de arquivo disponível que se pode acessar a qualquer momento e Anamnese ou a memória que está guardada em cada um e que pode ser recuperada com certo esforço. A primeira envolve um registro consciente, enquanto a segunda manifesta o que há de inconsciente na produção de nossas vidas, ou seja, o que nos constitui sem que tenhamos percebido que nos aconteceu, que se forjou por nossa própria obra.

A memória era a deusa que permitia a conexão com os mortos, com o que já foi, com o que poderia ter sido, com o que, para sempre, não mais nos pertence desde que, com ele, não partilhamos o tempo.

Quando esquecer é uma culpa mal-resolvida

O atual modo de vida, pleno de elementos descartáveis, não privilegia a memória. O que se chama “consumismo” tem relação direta com o abandono e o descaso com a memória. Descarta-se tudo, de objetos de uso doméstico a amigos, de roupas a amores. O projeto ecologista da reciclagem é, de certo modo, um trabalho de memória. Na apressada vida urbana vige a regra de que tudo passa, o encanto pertence apenas à novidade, tudo vira lixo instantaneamente. A fungibilidade, a capacidade de trocar, é universal. Se tudo o que existe deve ser descartado, significa que sua existência não faz muita diferença. Esquecer assim, ou elevar o esquecimento a esta lei, é algo perverso.

Este gesto tem, porém, uma estranha e maléfica compensação. Numa cultura em que esquecer é a lei, ressentir é inevitável. O ressentimento é a incapacidade de esquecer, impossibilidade de deixar de lado, de abandonar o verdadeiro lixo, ou, em outros termos, o passado com o que, nele, foi espúrio. Ressentimos porque não somos capazes de ver além, carregamos o sofrimento como gozo, ou seja, como o que, contraditoriamente, nos faz bem.

Por outro lado, o ressentimento é movido pela culpa de ter abandonado algo que, injustiçado, tempos depois, reclama sua volta. O ressentimento é um mal por ser fruto da culpa. A culpa, por sua vez, é como uma doença contagiosa da qual a humanidade inteira foi vítima, e ainda é, enquanto não aprende a compreender e aceitar suas próprias escolhas. A esta capacidade chama-se hoje responsabilidade. Mas mesmo com a responsabilidade é preciso tomar cuidado para que ela não seja um mero disfarce da culpa que ainda não eliminamos. Responsabilidade só é possível quando há solidariedade. Quando nos responsabilizamos não apenas por nossas vidas e atos, mas percebemos que somos apenas parte da vida e que muitas de nossas escolhas são coletivas.

Vantagens da memória e do esquecimento

Nietzsche, filósofo que morreu em 1900, dizia que a memória tinha vantagens e desvantagens na vida. É certo que quem quiser viver bem, quem almejar de algum modo ser feliz, deverá provar o equilíbrio entre lembrar e esquecer. Temos, neste momento, um problema de distinção: o que devemos esquecer, o que devemos lembrar? Na busca de um meio termo, mais vantajoso será guardar o que nos traz bons afetos, ou alegria e descartar o que nos traz maus sentimentos, ou tristezas. Motivos para a infelicidade não faltam a quem quiser olhar para a história humana e a história pessoal. Mas enquanto a memória histórica nos faz bem, pois nos mostra o que se passou para chegarmos até aqui, a memória pessoal faz o mesmo, mas ela só tem sentido se conectada à memória coletiva. Para poder buscar a alegria de viver é preciso olhar para a frente, para o futuro e reinventar a vida a cada dia. É esta invenção do presente que nos dará, no futuro, um passado do qual tenhamos prazer em lembrar. Viver do passado ou no passado, só prejudica o presente no qual, elaboramos o que será amanhã o passado.

Esquecer com criatividade

Diante do trauma, da lembrança que ficou recalcada em substratos profundos de nossa inconsciência, que define o ser e o agir sociedades inteiras, como o que foi vivido em catástrofes como a nazista, a do Vietnã, a da colonização e escravização no Brasil, e tantas que conhecemos nas vidas pessoais e familiares, esquecer torna-se um remédio contra o sofrimento. Mas esquecer não é apagar o que se viveu de modo abstrato, muitas vezes é justamente pela “rememoração” que nos lembramos. Por isso, contar histórias, fazer arte, ou seja, deixar-se levar pelas musas, continua sendo a melhor saída. A vida criativa é a única que evita o mau esquecimento e, por outro lado, a má lembrança que é o ressentimento.


Revista Vida Simples, Março 2007

10 de out. de 2010

Ir-se


Magritte 


Cada vez que te vayas de vos misma
no olvides que te espero
en tres o cuatro puntos cardinales
siempre habrá un sitio dondequiera
con un montón de bienvenidas
todas te reconocen desde lejos
y aprontan una fiesta tan discreta
sin cantos sin fulgor sin tamboriles
que sólo vos sabrás que es para vos
cada vez que te vayas de vos misma
procura que tu vida no se rompa
y tu otro vos no sufra el abandono
y por favor no olvides que te espero
con este corazón recién comprado
en la feria mejor de los domingos
cada vez que te vayas de vos misma
no destruyas la vía de regreso
volver es una forma de encontrarse
y así verás que allí también te espero.


Mario Benedetti

20 de set. de 2009

A arte de abandonar


foto: Clarice Lispector
Saber desistir. Abandonar ou não abandonar — esta é muitas vezes a questão para um jogador. A arte de abandonar não é ensinada a ninguém. E está lon­ge de ser rara a situação angustiosa em que devo de­cidir se há algum sentido em prosseguir jogando. Serei capaz de abandonar nobremente? ou sou daqueles que prosseguem teimosamente esperando que aconteça al­guma coisa? como, digamos, o próprio fim do mundo? ou seja lá o que for, como a minha morte súbita, hi­pótese que tornaria supérflua a minha desistência?
Clarice Lispector In: Um sopro de vida

João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)