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13 de abr. de 2020

A beleza que se diz :: Valter Hugo Mãe


Van Gogh 
"(...) só existe a beleza que se diz. Só existe a beleza se existir interlocutor. A beleza da lagoa é sempre alguém. Porque a beleza da lagoa só acontece porque a posso partilhar. Se não houver ninguém, nem a necessidade de encontrar a beleza existe nem a lagoa será bela. A beleza é sempre alguém, no sentido em que ela se concretiza apenas pela expectativa da reunião com o outro. (...) Ainda que as palavras sejam débeis. As palavras são objetos magros incapazes de conter o mundo. Usamo-las por pura ilusão. Deixámo-nos iludir assim para não perecermos de imediato conscientes da impossibilidade de comunicar e, por isso, a impossibilidade da beleza. Todas as lagoas do mundo dependem de sermos ao menos dois. Para que um veja e o outro ouça. Sem um diálogo não há beleza e não há lagoa."
 in : A desumanização. Porto Editora, 2014.

6 de jan. de 2017

Minha vontade é a de colocar cada vez mais poesia neste meu espaço :: Hilda Hilst

Minha vontade é a de colocar cada vez mais poesia neste meu espaço, para encher de beleza e de justa ferocidade o coração do outro, do outro que é você, leitor. Porque tudo o que me vem às mãos através dos jornais, tudo o que me vem aos olhos através da televisão, tudo o que me vem aos ouvidos através do rádio é tão pré-apocalipse, tão pútrido, tão devastador que fico me perguntando: por que ainda insistimos colocar palavras nas páginas em branco? [...] Enquanto não forem feitas reformas políticas e econômicas essenciais e, principalmente, leitor, um ardente coração, um dilatar-se da alma do Homem, tudo ficará como está. Podem me chamar de louca, de fantasista, [...] até de... Não sei se vocês sabem, mas “Puta” foi uma grande deusa da mitologia grega. Vem do verbo “putare”, que quer dizer podar, pôr em ordem, pensar. Era a deusa que presidia à podadura. Só depois é que a palavra degringolou na propriamente dita e em “deputado”, “putativo” etc. Se eu, de alguma forma com os meus textos, ando ceifando vossas ilusões, é para fazer nascer em ti, leitor o ato de pensar. Não sou deusa, não. Sou apenas poeta. Mas poeta é aquele que é quase profeta [...]

Correio Popular. Campinas , 
25 de junho de 1994.

3 de jul. de 2016

Os Dois Horizontes :: Machado de Assis

          Um horizonte, — a saudade 
          Do que não há de voltar; 
          Outro horizonte, — a esperança 
          Dos tempos que hão de chegar; 
          No presente, — sempre escuro,— 
          Vive a alma ambiciosa 
          Na ilusão voluptuosa 
          Do passado e do futuro. 

          Os doces brincos da infância 
          Sob as asas maternais, 
          O vôo das andorinhas, 
          A onda viva e os rosais; 
          O gozo do amor, sonhado 
          Num olhar profundo e ardente, 
          Tal é na hora presente 
          O horizonte do passado. 

          Ou ambição de grandeza 
          Que no espírito calou, 
          Desejo de amor sincero 
          Que o coração não gozou; 
          Ou um viver calmo e puro 
          À alma convalescente, 
          Tal é na hora presente 
          O horizonte do futuro. 

          No breve correr dos dias 
          Sob o azul do céu, — tais são 
          Limites no mar da vida: 
          Saudade ou aspiração; 
          Ao nosso espírito ardente, 
          Na avidez do bem sonhado, 
          Nunca o presente é passado, 
          Nunca o futuro é presente. 

          Que cismas, homem? – Perdido 
          No mar das recordações, 
          Escuto um eco sentido 
          Das passadas ilusões. 
          Que buscas, homem? – Procuro, 
          Através da imensidade, 
          Ler a doce realidade 
          Das ilusões do futuro. 
          
          Dois horizontes fecham nossa vida. 

Machado de Assis. in Crisálidas. Civilização Brasileira, 1976. 

5 de out. de 2015

Eu não possuo o meu corpo como posso eu possuir com ele? Fernando Pessoa (Bernardo Soares)

Eu não possuo o meu corpo como posso eu possuir com ele? Eu não possuo a minha alma — como posso possuir com ela? Não compreendo o meu espírito como através dele compreender?
As nossas sensações passam — como possuí-las pois — ou o que elas mostram muito menos. Possui alguém um rio que corre, pertence a alguém o vento que passa?
Não possuímos nem um corpo nem uma verdade — nem sequer uma ilusão. Somos fantasmas de mentiras, sombras de ilusões e a minha vida é vã por fora e por dentro.
Conhece alguém as fronteiras à sua alma, para que possa dizer — eu sou eu?
Mas sei que o que eu sinto, sinto-o eu.
Quando outro possui esse corpo, possui nele o mesmo que eu? Não. Possui outra sensação.
Possuímos nós alguma coisa? Se nós não sabemos o que somos, como sabemos nós o que possuímos?

s.d.
Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.I. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.  p. 271.

13 de jun. de 2015

Toda a vida da alma humana é um movimento na penumbra :: Bernardo Soares /Fernando Pessoa (Lisboa, 13 de Junho de 1888 — Lisboa, 30 de Novembro de 1935),

Toda a vida da alma humana é um movimento na penumbra. Vivemos, num lusco-fusco de consciência, nunca certos com o que somos ou com o que nos supomos ser. Nos melhores de nós vive a vaidade de qualquer coisa, e há um erro cujo ângulo não sabemos. Somos qualquer coisa que se passa no intervalo de um espectáculo; por vezes, por certas portas, entrevemos o que talvez não seja senão cenário. Todo o mundo é confuso, como vozes na noite.
Estas páginas, em que registo com uma clareza que dura para elas, agora mesmo as reli e me interrogo. Que é isto, e para que é isto? Quem sou quando sinto? Que coisa morro quando sou?
Como alguém que, de muito alto, tente distinguir as vidas do vale, eu assim mesmo me contemplo de um cimo, e sou, com tudo, uma paisagem indistinta e confusa.
É nestas horas de um abismo na alma que o mais pequeno pormenor me oprime como uma carta de adeus.
Sinto-me constantemente numa véspera de despertar, sofro-me o invólucro de mim mesmo, num abafamento de conclusões. De bom grado gritaria se a minha voz chegasse a qualquer parte. Mas há um grande sono comigo, e desloca-se de umas sensações para outras como uma sucessão de nuvens, das que deixam de diversas cores de sol e verde a relva meio ensombrada dos campos prolongados.
Sou como alguém que procura ao acaso, não sabendo onde foi oculto o objecto que lhe não disseram o que é. Jogamos às escondidas com ninguém. Há, algures, um subterfúgio transcendente, unia divindade fluida e ouvida.
Releio, sim, estas páginas que representam horas pobres, pequenos sossegos ou ilusões, grandes esperanças desviadas para a paisagem, mágoas como quartos onde se não entra, certas vozes, um grande cansaço, o evangelho por escrever.
Cada um tem a sua vaidade, e a vaidade de cada um é o seu esquecimento de que há outros com alma igual. A minha vaidade são algumas páginas, uns trechos, certas dúvidas...
Releio? Menti! Não ouso reler. Não posso reler. De que me serve reler? O que está ali é outro. Já não compreendo nada...
10-4-1930
Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.II. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.  - 427.
"Fase confessional", segundo António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Vol II. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986.

1 de jun. de 2015

Retrato antigo :: José António Lozano

(...) Era então quando fazíamos uma improvisada encenação com teias e vestidos passados de moda, papel, cartão, sedas: as nossas ilusões. Marionetes e títeres.
- Podemos começar?
- Adiante
- Quem fala?
- Adivinha com o coração, pensa com as tuas mãos. Respira pela ponta dos pés. Vês com os teus dedos?
- Onde está o meu chocolate?
- Cala e anda, bebe e cala. Fala Clara?
- Calma
- Clara!
- Chama!?
A chama da vela apagava-se. Bela chama que se extinguia numa doce impressão de revolta. Nós estávamos rígidas, tão rígidas como bonécos, tão incompreensíveis como as nossas fabulosas pistas.
Uma vela, um mínimo candeeiro e aí estavam os nossos jogos de pátios azúis e de distâncias de nuvem. Os nossos olhos de carvão e vinho reflecteriam-se nas taças de chocolate de tia Letícia: carvão, vinho (nos nossos olhos, no nosso brilho) e chocolate sobre as colecções de borboletas e cenários de roupas velhas que descem como um conto de falas ligeiras. Como escrever no círculo mágico das horas oblíquas um momento ou a intuição dum momento? Doce, pois, percorre pelos sensos a voz da casa e tudo acorda veloz, veloz como dedos finos, na sua mímica e no teatro do mundo: a nossa pequena estância.
Vagarosamente a tarde decaía e a noite antiquíssima impunha o seu desvelado sonho. Eu crescia com as minhas incomparáveis amigas na mais iluminada das excitações de seda ou antigas varandas. Era eu realmente?
fonte:  Retrato antigo. Laiovento, 1993.

25 de abr. de 2015

A ilusão do migrante :: Carlos Drumond de Andrade

Quando vim da minha terra,
se é que vim da minha terra
(não estou morto por lá?),
a correnteza do rio
me sussurrou vagamente
que eu havia de quedar
lá donde me despedia.
Os morros, empalidecidos
no entrecerrar-se da tarde,
pareciam me dizer
que não se pode voltar,
porque tudo é conseqüência
de um certo nascer ali.

Quando vim, se é que vim
de algum para outro lugar,
o mundo girava, alheio
à minha baça pessoa,
e no seu giro entrevi
que não se vai nem se volta
de sítio algum a nenhum.

Que carregamos as coisas,
moldura da nossa vida,
rígida cerca de arame,
na mais anônima célula,
e um chão, um riso, uma voz
ressoam incessantemente
em nossas fundas paredes.

Novas coisas sucedendo-se
iludem a nossa fome
de primitivo alimento.
As descobertas são máscaras
do mais obscuro real,
essa ferida alastrada
na pele de nossas almas.

Quando vim da minha terra
não vim, perdi-me no espaço,
na ilusão de ter saído.
Ai de mim, nunca saí.
Lá estou eu, enterrado
por baixo de falas mansas,
por baixo de negras sombras,
por baixo de lavras de ouro,
por baixo de gerações,
por baixo, eu sei, de mim mesmo,
este vivente enganado,
enganoso.

6 de mar. de 2015

Cantiga de acordar :: Edu Lobo e Chico Buarque

MordechaiArdon

Foi uma ilusão
Uma insensatez
Há que pôr o chão
Nos pés

Era como um trem
Que anda sem passar
Era um tempo sem
Lugar

Mas
Foi um sonho bom
De sonhar porque
Me sonhava com
Você
E então seu canto veio me acordar

Era uma ilusão
No interior
De uma outra ilusão
Maior

Mas
Você foi pro sol
Noite me envolveu
Num silêncio igual
Ao seu
E então seu canto veio me acordar

Tudo é uma ilusão
Os que estão aqui
Esses não estão
Em si
Do universo, o além
Faunos ou mortais
Vão restar mais nem
Sinais

Tudo o que se vê
É o sonho de algum
Pobre sonhador
Todas as estrelas
Todas as misérias
Todos os desejos
E a canção do meu amor
Tudo o que se viu
Tudo o que se foi

Última ilusão
Amanhece já
Vai-se abrir o chão
Quiçá
A ilusão se esvai
É uma cena só
E a cortina cai
Sem dó
Vai cessar o som
A sessão já foi
Despertar é bom
Mas dói

Pedras vão rolar
Choram serviçais
Vão se espatifar
Vitrais
Tomba o refletor
Ardem camarins
Cai no bastidor
A atriz
Descarrila o trem
O pilar cedeu
Vai morrer meu bem
E eu

Num jardim fugaz
De espirais sem fim
Eu corria atrás
De mim
O homem se distrai
Dorme em boa fé
Sua sombra sai
A pé

Mas
Foi uma ilusão
Uma insensatez
Há que pôr o chão
Nos pés


Edu Lobo/Chico Buarque - 2001
Para o musical Cambaio, de Adriana e João Falcão

10 de fev. de 2015

Mudemos de Jorge Gomes Miranda

Mauricio Aurvalle 

Mudemos de casa; porque é preciso
arrumar as dores de outra maneira,
certificarmo-nos da existência do corpo
em novos lençóis, voltar a ter ilusões,
lugar propício para a curiosidade
de alguns que nos fazem acreditar
que a vida é um amplo anfiteatro
para as mãos.


19 de nov. de 2014

Miguel Torga: Viagem



Winslow Homer
Aparelhei o barco da ilusão
E reforcei a fé de marinheiro.
Era longe o meu sonho, e traiçoeiro
O mar...
(Só nos é concedida
Esta vida
Que temos;
E é nela que é preciso
Procurar
O velho paraíso
Que perdemos).
Prestes, larguei a vela
E disse adeus ao cais, à paz tolhida.
Desmedida,
A revolta imensidão
Transforma dia a dia a embarcação
Numa errante e alada sepultura...
Mas corto as ondas sem desanimar.
Em qualquer aventura,

O que importa é partir, não é chegar.

17 de set. de 2014

Doída alegria - Ferreira Gullar

Aldemir Martins
Durante anos
foi a minha constante companhia
aonde eu estava
ele vinha
e ronronando
em meu colo se acolhia

Até que um dia...

Faz anos já que a casa está vazia

Mas eis que
inesperado
ele de novo chega
e se deita a meu lado

Não me atrevo
a olhá-lo
pois é melhor não vê-lo
que não vê-lo

Nada pergunto
apenas vivo
a doída ilusão
de tê-lo junto

25 de mai. de 2014

Sobre o presente :: Marcelo Gleiser

Como dizia Gilberto Gil, "O melhor lugar do mundo é aqui e agora". Todo mundo sabe exatamente o que isso significa, "aqui" e "agora". Mas se paramos para pensar sobre o assunto, descobrimos que nenhum dos dois existe, ao menos de forma concreta. O que existe é uma representação do aqui e do agora em nossas mentes, criada a partir de um truque cognitivo.

No fim das contas, o aqui e o agora são invenções do nosso cérebro, e não entidades que existem, como você ou a cadeira em que você se senta.

A nossa percepção do real, da realidade, é produto de uma integração extremamente complexa feita por nossos cérebros. São incontáveis estímulos sensoriais, imagens, sons, cheiros, tato, que são recolhidos pelos nossos órgãos, transferidos por impulsos nervosos ao nosso cérebro e lá, em regiões diversas, integrados para criar o que chamamos de realidade. O aqui e o agora são exemplos dessa integração, aproximações que criamos para que seja possível funcionar no mundo: sem uma noção do "aqui", como nos posicionar no espaço? Sem uma noção do "agora", do "presente", como ligar passado e futuro?

Que o cérebro constrói a realidade não deve ser surpresa para ninguém. Basta alterar seu funcionamento, após algumas cervejas, uma noite sem dormir ou com o uso de drogas, que nossa percepção do "real" é profundamente afetada. Ninguém dá muita bola para isso, até que acontece alguma coisa. Num caso mais extremo, a demência leva à destruição do indivíduo, do que chamamos de "eu". Quem você é e como você se relaciona com o mundo externo depende exclusivamente de como o seu cérebro integra informação sensorial e as memórias registradas do passado.

O presente, em particular, é uma construção cognitiva fascinante. O tempo flui continuamente, ou assim o percebemos. Mas não temos um relógio dentro das nossas cabeças; o que temos são impulsos externos, estímulos que vêm de fora para dentro, aliados a mecanismos internos, como o bater do coração. Quando vemos algo, fótons de luz são recebidos pela retina de nossos olhos, e um impulso é transmitido pelo nervo óptico até a região posterior do cérebro, onde é analisado e transformado numa imagem. Vemos o mundo de dentro para fora de nossas cabeças! E o que chamamos de presente é uma ilusão.

Quando olhamos em torno, vemos objetos a distâncias diferentes ao mesmo tempo. Mas sabemos que a luz tem uma velocidade finita: o tempo que demora para viajar de um objeto mais distante é maior. Portanto, quando olhamos, por exemplo, para uma árvore e uma nuvem no céu, e vemos os dois objetos ao mesmo tempo, estamos, na verdade, vendo a árvore antes da nuvem; objetos mais distantes estão num passado mais longínquo. Mesmo o seu laptop ou o jornal que você lê não estão sendo vistos agora, mas um bilionésimo de segundo no passado, que é aproximadamente o tempo que a luz demora para ir da tela até os seus olhos.

Quando nos referimos ao presente, estamos, na verdade, nos referindo a uma ilusão construída por nossos cérebros. Nunca vemos nada como é "agora". O presente existe apenas em nossas cabeças.

31 de mar. de 2014

A cotidianidade dá uma ilusão de perenidade :: Julián Marías,

Klimt 

A imaginação nunca se detém no hoje; a projeção é inevitável; o homem projeta e projeta e projeta, indefinidamente, e vai traçando trajetórias. A cotidianidade em nenhum caso é indefinida: mudam as coisas que compõem a circunstância, passam as idades, produz-se o envelhecimento, ao final encontra-se a morte, própria e alheia. Ao despertar, sobretudo se se faz à felicidade, se imagina e projeta, mas se percebe que não é possível continuar indefinidamente. A cotidianidade, e isso é fundamental, finge uma ilusão de eternidade: se o homem faz todos os dias as mesmas coisas, tem a impressão de que o poderá fazer sempre; não é verdade, e o sabe, mas a cotidianidade dá uma ilusão de perenidade, sem a qual a vida seria angustiante.
Fonte: A Felicidade Humana. Duas Cidades, pg. 361)

6 de nov. de 2013

Apoderava-se das minhas palavras :: Fernando Esteves Pinto


Apoderava-se das minhas palavras 
como se fossem uma toalha do seu rosto
alguns utensílios reservados para a sua vida. 
Eu escrevia casa e a casa teria de ser a defesa do nosso amor. 
Eu escrevia cama e a cama transformava-se num jogo de silêncio.
Vivia por trás da minha escrita 
como se preenchesse a alma de tudo o que não entendia.
Queria que eu mobilasse a vida só com palavras 
breves imagens que fossem o retrato do meu pensamento. 
Eu proporcionava-lhe a felicidade como um enigma
em cada palavra um sentimento formalmente virtual
depois abandonava-a com a ilusão do espaço decorativo.
.
In:  Área Afectada.  Temas Originais, 2010

11 de ago. de 2012

A terceira margem do rio de Hélio Pellegrino


Com o passar do tempo, e em virtude do processo de minha própria maturação, percebo, literalmente, que não posso viver de ilusão. Os objetos externos se impõem, cada vez mais e, com sua autonomia, me fazem perceber as falhas de meus jogos – e dispositivos – imaginários. Preciso da realidade e dos outros, cada vez com mais urgência. A negação da realidade, pela qual construí meu sentimento de completude narcísica, tem que agora ser, por sua vez, negada. A negação dessa negação é o simbólico. Perco a capacidade de fechar os olhos ao mundo, através de minhas construções imaginárias mas, abrindo mão delas, vou simbolizá-­las, no mundo exterior segundo as leis que o regem e, acima de tudo, segundo as leis da linguagem e da cultura. A linguagem, portanto, é a terceira margem do rio, confluência do sonho e da realidade, núpcias da pulsão e do Logos, que, no transporte da paixão, engendra o verbo. Há quem pense que, com a dominância do princípio da realidade, o sonho se acabe. Em verdade, não acaba nunca. O sonho é centelha que salta do desejo e é através dela que vou acender as fogueiras através das quais o rosto do mundo se ilumina. O sonho, levado aos ombros da realidade, que o simboliza, é o projeto profundo do homem e a teleologia da história. O sonho, vivido, enraizado no real, que o suporta, vai ser a matriz da utopia, o eixo das grandes transformações que fazem a grandeza do processo civilizatório.
Pellegrino, Hélio. Édipo e Paixão in: Os Sentidos da Paixão . Companhia das Letras, São Paulo, 1986. p. 311-321

João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)