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24 de set. de 2015

Valsinha :: Vinicius de Moraes - Chico Buarque


Um dia ele chegou tão diferente 
Do seu jeito de sempre chegar
Olhou-a dum jeito muito mais quente 
Do que sempre costumava olhar
E não maldisse a vida tanto quanto 
Era seu jeito de sempre falar
E nem deixou-a só num canto, 
Pra seu grande espanto convidou-a pra rodar

Então ela se fez bonita como há muito tempo não queria ousar
Com seu vestido decotado cheirando a guardado de tanto esperar
Depois os dois deram-se os braços como 
há muito tempo não se usava dar
E cheios de ternura e graça foram para a praça
E começaram a se abraçar

E ali dançaram tanta dança que a vizinhança toda despertou
E foi tanta felicidade que toda a cidade se iluminou
E foram tantos beijos loucos
Tantos gritos roucos como não se ouvia mais
Que o mundo compreendeu
E o dia amanheceu
Em paz

26 de out. de 2014

1 de set. de 2014

O vestido branco - Clarice Lispector

   James McNeill Whistler, 1864  

Acordei de madrugada desejando ter um vestido branco. E seria de gaze. Era um desejo intenso e lúcido. Acho que era a minha inocência que nunca parou. Alguns, bem sei, já até me disseram, me acham perigosa.. Mas também sou inocente. A vontade de me vestir de branco foi o que sempre me salvou. Sei, e talvez só eu e alguns saibam, que se tenho perigo tenho também uma pureza. E ela só é perigosa para quem tem perigo dentro de si. A pureza de que falo é límpida: até as coisas ruins a gente aceita. E tem um gosto de vestido branco de gaze. Talvez eu nunca venha a tê-lo, mas é como se tivesse, de tal modo se aprende a viver com o que tanto falta. Também quero um vestido preto porque me deixa mais clara e faz minha pureza sobressair. É mesmo pureza? O que é primitivo é pureza. O que é espontâneo é pureza. O que é ruim é pureza? Não sei, sei que às vezes a raiz do que é ruim é uma pureza que não pôde ser.
     Acordei de madrugada com tanta intensidade por um vestido branco  de gaze, que abri meu guarda-roupa. Tinha um branco, de pano grosso e decote arredondado. Grossura é pureza? Uma coisa sei: amor, por mais violento, é.
     E eis que de repente agora mesmo vi que não sou pura.
In: A descoberta do mundo. Nova Fronteira, 1984. p. 104.

23 de jan. de 2014

Caso do Vestido :: Carlos Drummond de Andrade

Nossa mãe, o que é aquele
vestido, naquele prego?

Minhas filhas, é o vestido
de uma dona que passou.

Passou quando, nossa mãe?
Era nossa conhecida?

Minhas filhas, boca presa.
Vosso pai evém chegando.

Nossa mãe, dizei depressa
que vestido é esse vestido.

Minhas filhas, mas o corpo
ficou frio e não o veste.

O vestido, nesse prego,
está morto, sossegado.

Nossa mãe, esse vestido
tanta renda, esse segredo!

Minhas filhas, escutai
palavras de minha boca.

Era uma dona de longe,
vosso pai enamorou-se.

E ficou tão transtornado,
se perdeu tanto de nós,

se afastou de toda vida,
se fechou, se devorou,

chorou no prato de carne,
bebeu, brigou, me bateu,

me deixou com vosso berço,
foi para a dona de longe,

mas a dona não ligou.
Em vão o pai implorou.

Dava apólice, fazenda,
dava carro, dava ouro,

beberia seu sobejo,
lamberia seu sapato.

Mas a dona nem ligou.
Então vosso pai, irado,

me pediu que lhe pedisse,
a essa dona tão perversa,

que tivesse paciência
e fosse dormir com ele...

Nossa mãe, por que chorais?
Nosso lenço vos cedemos.

Minhas filhas, vosso pai
chega ao pátio.  Disfarcemos.

Nossa mãe, não escutamos
pisar de pé no degrau.

Minhas filhas, procurei
aquela mulher do demo.

E lhe roguei que aplacasse
de meu marido a vontade.

Eu não amo teu marido,
me falou ela se rindo.

Mas posso ficar com ele
se a senhora fizer gosto,

só pra lhe satisfazer,
não por mim, não quero homem.

Olhei para vosso pai,
os olhos dele pediam.

Olhei para a dona ruim,
os olhos dela gozavam.

O seu vestido de renda,
de colo mui devassado,

mais mostrava que escondia
as partes da pecadora.

Eu fiz meu pelo-sinal,
me curvei... disse que sim.

Sai pensando na morte,
mas a morte não chegava.

Andei pelas cinco ruas,
passei ponte, passei rio,

visitei vossos parentes,
não comia, não falava,

tive uma febre terçã,
mas a morte não chegava.

Fiquei fora de perigo,
fiquei de cabeça branca,

perdi meus dentes, meus olhos,
costurei, lavei, fiz doce,

minhas mãos se escalavraram,
meus anéis se dispersaram,

minha corrente de ouro
pagou conta de farmácia.

Vosso pais sumiu no mundo.
O mundo é grande e pequeno.

Um dia a dona soberba
me aparece já sem nada,

pobre, desfeita, mofina,
com sua trouxa na mão.

Dona, me disse baixinho,
não te dou vosso marido,

que não sei onde ele anda.
Mas te dou este vestido,

última peça de luxo
que guardei como lembrança

daquele dia de cobra,
da maior humilhação.

Eu não tinha amor por ele,
ao depois amor pegou.

Mas então ele enjoado
confessou que só gostava

de mim como eu era dantes.
Me joguei a suas plantas,

fiz toda sorte de dengo,
no chão rocei minha cara,

me puxei pelos cabelos,
me lancei na correnteza,

me cortei de canivete,
me atirei no sumidouro,

bebi fel e gasolina,
rezei duzentas novenas,

dona, de nada valeu:
vosso marido sumiu.

Aqui trago minha roupa
que recorda meu malfeito

de ofender dona casada
pisando no seu orgulho.

Recebei esse vestido
e me dai vosso perdão.

Olhei para a cara dela,
quede os olhos cintilantes?

quede graça de sorriso,
quede colo de camélia?

quede aquela cinturinha
delgada como jeitosa?

quede pezinhos calçados
com sandálias de cetim?

Olhei muito para ela,
boca não disse palavra.

Peguei o vestido, pus
nesse prego da parede.

Ela se foi de mansinho
e já na ponta da estrada

vosso pai aparecia.
Olhou pra mim em silêncio,

mal reparou no vestido
e disse apenas: — Mulher,

põe mais um prato na mesa.
Eu fiz, ele se assentou,

comeu, limpou o suor,
era sempre o mesmo homem,

comia meio de lado
e nem estava mais velho.

O barulho da comida
na boca, me acalentava,

me dava uma grande paz,
um sentimento esquisito

de que tudo foi um sonho,
vestido não há... nem nada.

Minhas filhas, eis que ouço
vosso pai subindo a escada.

Nova Reunião - 19 Livros de Poesia. José Olympio Editora, 1985. p. 157.

26 de mar. de 2013

Que maravilha das maravilhas! de Monteiro Lobato


Paulo Borges

- Que maravilha das maravilhas! exclamou Narizinho, de olhos arregalados, sentindo uma tontura tão forte que teve de sentar-se para não cair. Era um vestido que não lembrava nenhum outro desses que aparecem nos
figurinos. Feito de seda? Qual seda nada! Feito de côr - e côr do mar! Em vez de enfeites conhecidos - rendas, entremeios, fitas, bordados, plissés ou vidrilhos era enfeitado com peixinhos do mar. Não de alguns peixinhos só, mas de todos os peixinhos (...) E esses peixinhos-jóias não estavam pregados no tecido, como os enfeites e aplicações que se usam na terra. Estavam vivinhos, nadando na côr do mar como se nadassem n’agua. De modo que o vestido variava sempre, e variava tão lindo, lindo, lindo, que a tontura da menina apertou e ela pôs-se a chorar.
-É a vertigem da beleza! exclamou dona Aranha sorridente, dando-lhe a cheirar um vidrinho de éter.
(...)
O mais lindo era que o vestido não parava um só instante. Não parava de faiscar e brilhar, e piscar e furtar-côr, porque os peixinhos não paravam de nadar nele, descrevendo as mais caprichosas curvas por entre as algas boiantes. As algas ondeavam as suas cabeleiras verdes e os peixinhos brincavam de rodear os fios ondulantes sem nunca toca-los nem com a pontinha do rabo. De modo que tudo aquilo virava e mexia e subia e descia e corria e fugia e nadava e boiava e pulava e dançava que não tinha fim.
LOBATO, J.B.M. Reinações de Narizinho.

João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)