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3 de mar. de 2013

ADIAMENTO de Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)


Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...

Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,

E assim será possível; mas hoje não...

Não, hoje nada; hoje não posso.

A persistência confusa da minha subjectividade objectiva,

O sono da minha vida real, intercalado,

O cansaço antecipado e infinito,

Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico...

Esta espécie de alma...

Só depois de amanhã...

Hoje quero preparar-me,

Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...

Ele é que é decisivo.

Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...

Amanhã é o dia dos planos.

Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;

Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...

Tenho vontade de chorar,

Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...

Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.

Só depois de amanhã...

Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.

Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...

Depois de amanhã serei outro,

A minha vida triunfar-se-á,

Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático

Serão convocadas por um edital...

Mas por um edital de amanhã...

Hoje quero dormir, redigirei amanhã...

Por hoje qual é o espectáculo que me repetiria a infância?

Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,

Que depois de amanhã é que está bem o espectáculo...

Antes, não...

Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.

Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.

Só depois de amanhã...

Tenho sono como o frio de um cão vadio.

Tenho muito sono.

Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...

Sim, talvez só depois de amanhã...


O porvir...

Sim, o porvir...
14-4-1928


Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993). - 266.
1ª publ. in Solução Editora, nº1. Lisboa 1929.

9 de dez. de 2012

Espelho de Clarice Lispector nascida Haia Pinkhasovna Lispector (Tchetchelnik, Ucrânia em 10 de dezembro de 1920 — Rio de Janeiro, 9 de dezembro de 1977)

foto:  Stanislav Odyagailo
Espelho? Esse vazio cristalizado que tem dentro de si espaço para se ir em frente sem parar: pois espelho é o espaço mais fundo que existe. E é coisa mágica: quem tem um pedaço quebrado já poderia ir com ele meditar no deserto. Ver-se a si mesmo é extraordinário. Como um gato de dorso arrepiado, arrepio-me diante de mim. Do deserto também voltaria vazio, iluminado e translúcido, e com o mesmo silêncio vibrante de um espelho. A sua forma não importa: nenhuma forma consegue circunscrevê-lo e alterá-lo. Espelho é luz. Um pedaço mínimo de espelho é sempre o espelho todo. Tire-se sua moldura ou a linha de seu cortado, e ele cresce assim como água se derrama.
O que é um espelho? É o único material inventado que é natural. Quem olha um espelho, quem consegue vê-lo vem se ver, quem entende que a sua profundidade consiste em ele ser vazio, quem caminha para dentro de seu espaço transparente sem deixar nele o vestígio da própria imagem - esse alguém percebeu o seu mistério de coisa. Para isso há de se surpreendê-lo quando está sozinho, quando pendurado num quarto vazio, sem esquecer que a mais tênue agulha diante dele poderia transformá-lo em simples imagem de uma agulha, tão sensível é o espelho na sua qualidade de reflexão levíssima, só imagem e não o corpo. Corpo da coisa.
Ao pintá-lo precisei da minha própria delicadeza para não atravessá-lo com minha imagem, pois espelho em que eu me veja já sou eu, só espelho vazio é que é o espelho vivo. Só uma pessoa muito delicada pode entrar no quarto vazio onde há um espelho vazio, e com tal leveza, tal ausência de si mesmo, que a imagem não marca. Como prêmio essa pessoa delicada terá então penetrado num dos segredos invioláveis das coisas: viu o espelho propriamente dito.
In: Água viva

23 de jul. de 2012

O conto da ilha desconhecida (parte) de José Saramago

Disseram-me que já não há ilhas desconhecidas, e que, mesmo que as houvesse, não iriam eles tirar-se do sossego dos seus lares e da boa vida dos barcos de carreira para se meterem em aventuras oceânicas, à procura de um impossível, como se ainda estivéssemos no tempo do mar tenebroso, E tu, que lhes respondeste, Que o mar é sempre tenebroso, E não lhes falaste da ilha desconhecida, Como poderia falar-lhes eu duma ilha desconhecida, se não a conheço, Mas tens a certeza de que ela existe, Tanta como a de ser tenebroso o mar, Neste momento, visto daqui, com aquela água cor de jade e o céu como um incêndio, de tenebroso não lhe encontro nada, É uma ilusão tua, também as ilhas às vezes parece que flutuam sobre as águas, e não é verdade, Que pensas fazer, se te falta a tripulação, Ainda não sei, Podíamos ficar a viver aqui, eu oferecia-me para lavar os barcos que vêm à doca, e tu, E eu, Tens com certeza um mester, um ofício, uma profissão, como agora se diz, Tenho, tive, terei se for preciso, mas quero encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem sou eu quando nela estiver, Não o sabes, Se não sais de ti, não chegas a saber quem és, O filósofo do rei, quando não tinha que fazer, ia sentar-se ao pé de mim, a ver-me passajar as peúgas dos pajens, e às vezes dava-lhe para filosofar, dizia que todo o homem é uma ilha, eu, como aquilo não era comigo, visto que sou mulher, não lhe dava importância, tu que achas, Que é necessário sair da ilha para ver a ilha, que não nos vemos se não nos saímos de nós, Se não saímos de nós próprios, queres tu dizer, Não é a mesma coisa.

16 de jan. de 2012

27 de out. de 2011

1 de set. de 2011

17 de out. de 2010

Eu disse sem querer dizer: mãe, o mundo me dói, me dói pra valer.


Foi assim: de manhãzinha eu passeava dentro do pomar de D. Mariquinha. Peguei um maracujá, uma romã, ia pegando uns araçás quando senti aquela água na cara, jogada por D. Mariquinha. Xinguei assim: ô velha fedida, avarenta. Ia enxugar a cara. Um vento bateu. Fiquei parado no vento. Olhei tudo querendo ser sempre menino, querendo sempre ter um maracujá, uma romã, a vontade de alguns araçás, e água na cara e vento. Grande que eu era de pé, e alguma coisa me estufou o peito, alguma coisa me encheu a boca e eu gritei. OOOOOOOOIAAAAAAAAI e outra vez bem comprido OOOOOOOOOOOOOOOOOIAAAAAAAAAAAAAAAAAI. E a mãe veio correndo, os irmãos também, a velha muito assustada, os cachorros também, as galinhas pretas pequenininhas, a mula veio que veio depressa e todos me rodearam e a mãe falou sem respirar: oquefoimeninooquefoi? E aí eu disse sem querer dizer: mãe, o mundo me dói, me dói pra valer.
HILST, Hilda. Fluxo-floema. São Paulo: Globo, 2003. p.38-39.

3 de out. de 2010

O olho e o coração



“Em qualquer coisa que faça, deve existir uma relação entre o olho e o coração. 
Com o olho que está fechado, olha-se para dentro,
 com o outro que está aberto, olha-se para fora.
Cartier-Bresson

João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)