9 de dez. de 2012

Espelho de Clarice Lispector nascida Haia Pinkhasovna Lispector (Tchetchelnik, Ucrânia em 10 de dezembro de 1920 — Rio de Janeiro, 9 de dezembro de 1977)

foto:  Stanislav Odyagailo
Espelho? Esse vazio cristalizado que tem dentro de si espaço para se ir em frente sem parar: pois espelho é o espaço mais fundo que existe. E é coisa mágica: quem tem um pedaço quebrado já poderia ir com ele meditar no deserto. Ver-se a si mesmo é extraordinário. Como um gato de dorso arrepiado, arrepio-me diante de mim. Do deserto também voltaria vazio, iluminado e translúcido, e com o mesmo silêncio vibrante de um espelho. A sua forma não importa: nenhuma forma consegue circunscrevê-lo e alterá-lo. Espelho é luz. Um pedaço mínimo de espelho é sempre o espelho todo. Tire-se sua moldura ou a linha de seu cortado, e ele cresce assim como água se derrama.
O que é um espelho? É o único material inventado que é natural. Quem olha um espelho, quem consegue vê-lo vem se ver, quem entende que a sua profundidade consiste em ele ser vazio, quem caminha para dentro de seu espaço transparente sem deixar nele o vestígio da própria imagem - esse alguém percebeu o seu mistério de coisa. Para isso há de se surpreendê-lo quando está sozinho, quando pendurado num quarto vazio, sem esquecer que a mais tênue agulha diante dele poderia transformá-lo em simples imagem de uma agulha, tão sensível é o espelho na sua qualidade de reflexão levíssima, só imagem e não o corpo. Corpo da coisa.
Ao pintá-lo precisei da minha própria delicadeza para não atravessá-lo com minha imagem, pois espelho em que eu me veja já sou eu, só espelho vazio é que é o espelho vivo. Só uma pessoa muito delicada pode entrar no quarto vazio onde há um espelho vazio, e com tal leveza, tal ausência de si mesmo, que a imagem não marca. Como prêmio essa pessoa delicada terá então penetrado num dos segredos invioláveis das coisas: viu o espelho propriamente dito.
In: Água viva

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