Mostrando postagens com marcador Mapa. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Mapa. Mostrar todas as postagens

9 de nov. de 2015

Palavras-amálgamas :: Silvana Conterno

 Henrique Martins
Não joguei fora o que quebrou
Junto cacos, na esperança
de um dia ser inteira
Com as marcas da colagem
Traço o mapa em que me forjei
Desenho único e estranho
Finos traços e queloides
Quem se aproxima e me toca
De olhos fechados me reconhece
Sente planícies calmas, regaço acolhedor
alguns penhascos de dar vertigem
e cicatrizes profundas
Que hoje preencho
com palavras-amálgamas 
que a vida me doou


1 de abr. de 2015

PERFIL DE UM SER ELEITO :: Clarice Lispector

Ainda muito jovem era um ser que elegia. Entre as mil coisas que poderia ter sido, fora se escolhendo. Num trabalho para o qual usava lentes, enxergando o que podia e apalpando com as mãos úmidas o que não via, o ser fora escolhendo e por isso indiretamente se escolhia. Aos poucos se juntara para ser. Separava, separava. Em relativa liberdade, se se descontasse o furtivo determinismo que agira discreto sem se dar um nome. Descontado esse furtivo determinismo, o ser se escolhia livre. Guiava-o a vontade de descobrir o próprio determinismo, e segui-lo com esforço, pois a linha verdadeira é muito apagada, as outras são mais visíveis. Separava, separava. Separava o chamado joio do trigo, e o melhor, o melhor se comia. Às vezes comia o pior. A escolha difícil era comer o pior. Separava perigos do grande perigo, e era com o grande perigo que o ser, embora com medo, ficava. Só para pensar com susto o peso das coisas. Afastava de si as verdades menores que terminou não chegando a conhecer. Queria as verdades difíceis de suportar. Por ignorar as verdades menores, o ser parecia rodeado de mistério; por ser ignorante, era um ser misterioso. Tornara-se uma mistura do que pensavam dele e do que ele realmente era: um sabido ignorante; um sábio ingênuo; um esquecido que muito bem sabia de outras coisas; um sonho honesto; um pensativo distraído; um nostálgico sobre o que deixara de saber; um saudoso pelo que definitivamente, ao escolher, perdera; um corajoso por já ser tarde demais e já se ter escolhido. Tudo isso, contraditoriamente, deu ao ser uma alegria discreta e sadia de camponês que só lida com o básico. E tudo isso lhe deu a austeridade involuntária que todo trabalho vital dá. Escolha e ajustamento não tinham hora certa de começar nem acabar, duravam mesmo o tempo de uma vida.
Tudo isso, contraditoriamente, foi dando ao ser a alegria profunda que precisa se manifestar, expor-se e se comunicar. Passou a dar-se através da pintura. Nessa comunicação o ser era ajudado pelo seu dom inato de gostar. E isso nem juntara nem escolhera, era um dom mesmo. Gostava da profunda alegria dos outros, pelo dom inato descobrira a alegria dos outros. Por dom, era também capaz de descobrir a solidão que os outros tinham. E também por dom, sabia profundamente brincar o jogo da vida, transformando-a em cores e formas. Sem mesmo sentir que usava o seu dom, o ser se manifestava: dava sem perceber que a isso chamavam amor. O dom era como falta de camisa do homem feliz: como o ser sentia muito pobre e não tinha o que dar, o ser se dava. Dava-se em silêncio, e dava o que juntara de si, assim como quem chama os outros para verem também.
Pouco a pouco o equívoco passou a rodear o ser: os outros olhavam o ser como uma estátua, como um retrato. Um retrato muito rico. Não compreenderam que para o ser, ter se reunido, fora do trabalho de despojamento e não de riqueza. Por equívoco, o ser era festejado. Mas sentir-se amado seria reconhecer-se a si mesmo no amor recebido, e aquele ser era amado como se fosse um outro ser. O ser verteu as lágrimas de uma estátua que de noite na praça chora sem se mexer. Nunca o escuro fora maior na praça. Até que de novo amanhecia e o ser renascia. O ritmo da terra era tão generoso que amanhecia. Mas de noite, quando chegava a noite, de novo escurecia. A praça de novo crescia em solidão. De medo, os que haviam elegido dormiam: medo porque pensavam que teriam de morar na solidão da praça? Não sabiam que a solidão da praça fora apenas o lugar de trabalho do ser. Mas que ele também se sentia só. O ser prepara-se a vida toda para ser apto ao lado da força da praça. É verdade que o ser, ao se sentir pronto assim como quem se banha com óleos e perfumes, notou que não lhe havia sobrado tempo para existir como os outros: era diferente sem querer. Alguma coisa falhara, porque, quando o ser se via no retrato que os outros haviam tirado, espantava-se humilde diante do que haviam feito dele. Haviam feito dele nada mais, nada menos, que um ser eleito. Isto é, haviam-no sitiado. Como desfazer o equívoco? Por simplificação e economia de tempo, haviam fotografado o ser numa única pose e agora não se referiam a ele, e sim à fotografia. Bastava abrir a gaveta para tirar de dentro o retrato. Qualquer um conseguia uma cópia que custava, aliás, barato.
Quando diziam para o ser: eu te amo, o ser se perturbava porque nem ao menos podia agradecer: e eu? por que não a mim também? por que só ao meu retrato? Mas não reclamava pois sabia que os outros não erravam por maldade. O ser às vezes, por uma questão de solidão, tentava imitar a fotografia, o que no entanto terminou por torná-la mais falsamente autêntica. Às vezes ele se confundia todo: não aprendia a copiar o retrato, e esquecera-se de como era sem o retrato. De modo que, como se diz do palhaço que sempre ri, o ser às vezes, por assim dizer, chorava sob a sua caiada pintura de bobo da corte.
Então ele tentou um trabalho subterrâneo de destruição da fotografia: fazia ou dizia coisas tão opostas à fotografia que esta se eriçava na gaveta. Sua esperança era tornar-se mais vivo que a fotografia. Mas o que aconteceu? Aconteceu que tudo o que o ser fazia só ia mesmo era retocar o retrato, enfeitá-lo.
E assim foi indo, até que, profundamente desiludido nas legítimas aspirações, o ser morria de solidão. Mas terminou saindo da estátua da praça, com grande esforço, levando várias quedas, aprendendo a passear sozinho. E, como se diz, nunca a terra lhe pareceu tão bela. Reconheceu que aquela era exatamente a terra para a qual se preparara: não errara, pois, o mapa do tesouro tinha as indicações certas. Passeando, o ser tocava em todas as coisas e, mesmo solitário, sorria. O ser aprendera a sorrir sozinho.

Fonte: Para não esquecer. Rocco, 1999. p. 98.

1 de nov. de 2012

Oficina de Débora Siqueira Bueno

Portinari
A oficina de meu pai,
lugar só dele,
cheirava a graxa.
Tinha as ferramentas todas bem arrumadas.
Ele as pendurava num painel que fizera,
madeira envernizada,
os nós destacados.
A de minha mãe se espalhava pela casa –
a cozinha,
a varanda,
a cesta de costura,
a cadeira debaixo do abajur,
o jardim,
vasos de plantas,
o quarto.

Escrevo na escrivaninha
comprada usada,
incógnitas marcas.
O tampo é desses que abre e fecha
e tranca.
Sobre ela, dois microscópios
bem antigos, de metal,
para vasculhar detalhes.
Duas xícaras reproduzem
pinturas de Portinari
da Igreja de São Francisco –
peixes e aves, seres
das profundezas e dos ares,
onde constantemente vago.

A estante de livros,
arrumados conforme a seriedade e o gosto,
portas transparentes,
velha de muitas leituras,
me ladeia e observa.
É coroada pela máquina de escrever
que foi de meu pai
e me olha lá de cima.

Quando ele morreu
me foi perguntado o que eu queria dele.
Pedi a máquina, onde não escrevo,
mas que me abençoa.
Queria algo que guardasse
o toque de suas mãos.
Queria também palavras escritas,
grafadas com sua letra e lamento
não ter salvo as fichas
com os nomes poéticos das vacas
da fazenda Olhos d'água.

Em minha oficina uso
as ferramentas que herdei.
O gosto pela profundeza,
pelas palavras e história
ganhei de minha mãe;
também certa tristeza e o silêncio.
Impulso para entrar no mundo,
o sonho de conquistar grandes coisas
e um otimismo por vezes irrefreável,
estes recebi de meu pai.
O conhecimento sobre os caminhos de dentro
é decifração de meu próprio mapa,
percurso repetido
de me perder
e, de novo, ter que me buscar.

Fotografias de meus filhos,
obras feitas por suas mãos,
me ancoram ao tempo presente
e ao amor.


Pequenos objetos impregnados de afeto,
lembranças de estados d'alma;
o vaso de flores de maio,
as preferidas de minha avó;
janelas que arrematam
recortes de árvores e céu –
todos compõem meu espaço,
servem de pouso à vista,
repouso
para o nada pensar.

Componho melodias de silêncio.
Brotam do passado,
seguem ao futuro.
Aqui, só ser.
Aqui, sou.

João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)