24 de out. de 2022

Um grande número :: Wislawa Szymborska



Quatro bilhões de pessoas nesta terra,

e minha imaginação é como era.

Não se dá bem com grandes números.

Continua a comovê-la o singular.

Esvoaça no escuro como a luz da lanterna,

iluminando alguns rostos ao acaso,

enquanto o resto se perde nas trevas

na deslembrança, no desconsolo.

Mas nem Dante captaria mais.

Que dirá quando não se é.

Nem mesmo com a ajuda de todas as musas.


Non omnis moriar — uma aflição prematura.

Mas será que vivo por inteiro e será que isso basta?

Nunca bastou e muito menos agora.

Escolho excluindo porque não há outro jeito,

mas o que rejeito é mais numeroso,

mais denso, mais insistente do que nunca.

À custa de incontáveis perdas — um poeminha, um suspiro.

Ao chamado ruidoso respondo com um sussurro.

O quanto silencio, isso não direi.

Um rato ao pé da montanha materna.

A vida dura o tempo de umas marcas de garra na areia.

Meus sonhos — nem eles são como deveriam, habitados.

Neles há mais solidão do que multidões e alarido.

Às vezes aparece por momentos alguém há muito falecido.

Move a maçaneta uma mão solitária.

Expande-se em anexos de ecos a casa vazia.

Corro da soleira até o vale

silencioso, como de ninguém, já anacrônico.


De onde vem em mim ainda este espaço —

não sei.

11 de out. de 2022

O Impossível Carinho :: Manuel Bandeira

Mildred Anne Butler

Escuta, eu não quero contar-te o meu desejo
Quero apenas contar-te a minha ternura
Ah se em troca de tanta felicidade que me dás
Eu te pudesse repor
-Eu soubesse repor_
No coração despedaçado
As mais puras alegrias de tua infância!


3 de out. de 2022

Hilda Hilst :: Do Amor

 Como se te perdesse, assim te quero

Como se te perdesse, assim te quero

Como se não te visse (favas douradas

Sob um amarelo) assim te apreendo brusco

Inamovível, e te respiro inteiro


Um arco-íris de ar em águas profundas.


Como se tudo o mais me permitisses,

A mim me fotografo nuns portões de ferro

Ocres, altos, e eu mesma diluída e mínima

No dissoluto de toda despedida.


Como se te perdesse nos trens, nas estações

Ou contornando um círculo de águas

Removente ave, assim te somo a mim:

De redes e de anseios inundada.


João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)