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6 de jan. de 2012

Ode ao gato de Pablo Neruda

imagem: Gatos de Nadir da Costa

Os animais foram
imperfeitos, 
compridos de rabo, tristes 
de cabeça. 
Pouco a pouco se foram 
compondo, 
fazendo-se paisagem, 
adquirindo pintas, graça vôo. 
O gato, 
só o gato apareceu completo 
e orgulhoso: 
nasceu completamente terminado, 
anda sozinho e sabe o que quer.
O homem quer ser peixe e pássaro, 
a serpente quisera ter asas, 
o cachorro é um leão desorientado, 
o engenheiro quer ser poeta, 
a mosca estuda para andorinha, 
o poeta trata de imitar a mosca, 
mas o gato 
quer ser só gato 
e todo gato é gato do bigode ao rabo, 
do pressentimento à ratazana viva, 
da noite até os seus olhos de ouro.
Não há unidade 
como ele, 
não tem 
a lua nem a flor 
tal contextura: 
é uma coisa 
só como o sol ou o topázio, 
e a elástica linha em seu contorno 
firme e sutil é como 
a linha da proa de uma nave. 
Os seus olhos amarelos 
deixaram uma só 
ranhura 
para jogar as moedas da noite .
Oh pequeno imperador sem orbe, 
conquistador sem pátria, 
mínimo tigre de salão, nupcial 
sultão do céu 
das telhas eróticas, 
o vento do amor 
na intempérie 
reclamas 
quando passas 
e pousas 
quatro pés delicados 
no solo, 
cheirando, 
desconfiando 
de todo o terrestre, 
porque tudo 
é imundo 
para o imaculado pé do gato.
Oh fera independente 
da casa, arrogante 
vestígio da noite, 
preguiçoso, ginástico 
e alheio, 
profundíssimo gato, 
polícia secreta 
dos quartos, 
insígnia 
de um 
desaparecido veludo, 
certamente não há 
enigma na tua maneira, 
talvez não sejas mistério, 
todo o mundo sabe de ti e pertences 
ao habitante menos misterioso 
talvez todos acreditem, 
todos se acreditem donos, 
proprietários, tios 
de gato, companheiros, 
colegas, 
discípulos ou amigos do seu gato.
Eu não. 
Eu não subscrevo. 
Eu não conheço o gato. 
Tudo sei, a vida e o seu arquipélago, 
o mar e a cidade incalculável, 
a botânica 
o gineceu com os seus extravios, 
o pôr e o menos da matemática, 
os funis vulcânicos do mundo, 
a casca irreal do crocodilo, 
a bondade ignorada do bombeiro, 
o atavismo azul do sacerdote, 
mas não posso decifrar um gato. 
Minha razão resvalou na sua indiferença, 
os seus olhos têm números de ouro.

João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)