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11 de mai. de 2013

Vozes de Marrakech de Enrique Vila-Matas

david graham

Tinha ouvido falar das vozes de Marrakech, mas não sabia se estas tinham realmente algo de peculiar. Talvez sejam diferentes do resto das vozes do mundo, eu me disse ao instalar-me na varanda do café de onde se divisava a praça de Xemaá-el-Fná. Deu-me de pensar que nunca se fala da cor das vozes e que talvez em Marrakech isso fosse possível. Voz terra de Siena de Petrarca, voz cor de traje de faquir hindu. Talvez em Marrakech, eu me disse, as vozes tenham cor. Não tardei em comprovar que andava certo. Aproximou-se um garçom marroquino e, ao perguntar-me o que desejava tomar, pareceu-me que sua voz, que evocava o fundo sonoro dos muezins quando dos minaretes convocam o povo à oração, era uma voz cor cal de torre de mesquita. E pedi religiosamente um chá.
Apareceu um orate de pele escura, raça negra, branca cafetã impoluta. Toda minha atenção centrou-se nele e no seu ingrávido edifício sonoro. Nunca tinha visto trejeitos tão airados e tão sobriamente compassados ao ritmo de umas vibrações acústicas, inaudíveis para mim, que se apoderavam com grande energia do ambiente e que pareciam reproduzir, no ar entrecortado pelos gestos, uma história.
Imaginei que o orate só possuía uma história e que esta falava de um tronco triste alçado como mastro. Falava dele mesmo e dos dias em que lhe dominaram as ânsias de aventura. O orate negro tinha viajado a terras longínquas e, em seu périplo, foi apropriando-se de fragmentos de histórias que dissimuladamente havia escutado. Com todos estes retalhos foi compondo o romance airado e musical de sua vida: uma história que, com ritmo sincopado e artimanhas de mímico, vendia diariamente como um sonho a um público sempre devotado e fiel, ali em Xemaá-el-Fná.
Era a história ou o resumo fictício do que tinha sido sua vida. Uma vida sintetizada em quatro gestos que clamavam ao céu e em quatro vibrações acústicas e rítmicas de voz cor fraque branco de músico de jazz. Voz de orate negro. Na verdade aquela era toda uma voz de cor.

Enrique Vila-Matas. "La fuga en camisa". In. Recuerdos inventados. Barcelona: Anagrama, 1994 [originalmente publicado em Una casa para siempre] Tradução de Conrado Falbo

17 de fev. de 2012

Narradores e escreventes de Elias Canetti


Os mais concorridos são os narradores. À sua volta formam-se as rodas mais apinhadas e mais constantes. As récitas duram muito tempo, no círculo mais próximo os ouvintes se acocoram e não se levantam mais. Os demais, em pé, formam um segundo círculo; esses também mal se mexem, fascinados pelas palavras e gestos do narrador. Às vezes são dois que se revezam na récita. Suas palavras vêm de longe e pairam mais tempo no ar do que as do homem comum. Eu não entendia nada e mesmo assim ficava preso a suas vozes. Eram palavras sem nenhum significado para mim, proferidas com arroubo e ardor: faziam a delícia do homem que as pronunciava e se orgulhava delas. Ele as ordenava segundo um ritmo que sempre me parecia muito pessoal. Quando fazia uma pausa, o outro se adiantava, ainda mais impetuoso e sublime. Eu podia notar a solenidade de muitas palavras e a perfídia de outras. As lisonjas me tocavam como se fossem dirigidas a mim; sentia-me em perigo. Tudo estava sob o império do narrador, as palavras mais poderosas voavam precisamente até onde ele quisesse. A atmosfera entre os ouvintes estava carregada, e mesmo eu, que entendia tão pouco, sentia sua vida que se agitava.
Para ficar à altura de suas palavras, os narradores vestiam-se de forma vistosa. Os trajes eram sempre diferentes do usual dos ouvintes. Preferiam tecidos mais suntuosos; às vezes, um deles vinha vestido em veludo castanho ou azul. Pareciam personagens importantes, mas de carochinha. Mal de dignavam a olhar a gente que os cercava. Olhavam para os seus heróis e criaturas. Quando seu olhar caia sobre alguém do público, o sujeito devia se sentir tão opaco quanto os demais. Os estrangeiros nem existiam para eles, não tinham lugar no reino de suas palavras. De início, não conseguia acreditar que se interessassem tão pouco por mim, era insólito demais para ser verdade. E eu ficava mais tempo ainda, por mais que já me sentisse atraído por outros sons naquela praça transbordante de sons, mas não repararam em mim nem mesmo quando já começava a me sentir à vontade naquela grande roda. É claro que o narrador me notara, mas para ele eu seguia sendo alheio a seu círculo mágico, uma vez que eu não o entendia.
Muitas vezes teria dado tudo para entender o que diziam, e espero que chegue o dia em que eu possa fazer justiça a esses narradores ambulantes. Mas também ficava feliz de não entendê-los. Seguiam sendo para mim um enclave de vida antiga e intocada. Sua língua lhes era tão cara quanto a minha para mim. As palavras eram seu alimento, e ninguém os seduziria a trocá-lo por algum outro melhor. Eu tinha orgulho do poder narrativo que eles exerciam sobre seus conterrâneos. Pareciam meus irmãos mais velhos e mais experientes. Nos melhores momentos, eu me dizia: eu também sei juntar pessoas à minha volta quando narro uma história, também a mim elas dão ouvidos. Mas, em vez de ir de um lugar para o outro, sem nunca saber quem vou encontrar pela frente, quais ouvidos vão se abrir para mim, em vez de viver da plena confiança no que tenho a narrar, eu me entreguei ao papel. Vivo agora sob a proteção de portas e escrivaninhas, um sonhador covarde, enquanto eles vivem no tumulto do mercado, entre cem rostos desconhecidos, mudando diariamente, livres do fardo de um saber frio e supérfluo, sem livros, ambição ou nomeada. Poucas vezes me senti bem entre os homens das nossas terras que vivem de literatura. Eu os desprezei porque desprezo alguma coisa em mim mesmo, e creio que essa alguma coisa é o papel. E de repente estava entre poetas que eu podia olhar com admiração, pois deles não havia nada que ler.
fonte: Canetti, Elias.  As vozes de Marrakech.  Cosac Naify, 2006.

João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)