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20 de set. de 2014

LULJETA LLESHANAKU (llbasan, Albânia,1968)

Mark Rothko, 1966

Quando pela primeira vez olhei uma pintura verdadeira
dei alguns passos atrás instintivamente
sobre os calcanhares
procurando o local exacto de
onde pudesse explorar sua profundidade.

Foi diferente com as pessoas:
Construi-as,
amei-as, mas não cheguei a amá-las plenamente.
Nenhuma chegou tão alto quanto o tecto azul.
Como numa casa inacabada, parecia haver uma folha de plástico por cima delas,
por vez do telhado
no princípio do outono chuvoso da minha compreensão.

1 de nov. de 2012

Oficina de Débora Siqueira Bueno

Portinari
A oficina de meu pai,
lugar só dele,
cheirava a graxa.
Tinha as ferramentas todas bem arrumadas.
Ele as pendurava num painel que fizera,
madeira envernizada,
os nós destacados.
A de minha mãe se espalhava pela casa –
a cozinha,
a varanda,
a cesta de costura,
a cadeira debaixo do abajur,
o jardim,
vasos de plantas,
o quarto.

Escrevo na escrivaninha
comprada usada,
incógnitas marcas.
O tampo é desses que abre e fecha
e tranca.
Sobre ela, dois microscópios
bem antigos, de metal,
para vasculhar detalhes.
Duas xícaras reproduzem
pinturas de Portinari
da Igreja de São Francisco –
peixes e aves, seres
das profundezas e dos ares,
onde constantemente vago.

A estante de livros,
arrumados conforme a seriedade e o gosto,
portas transparentes,
velha de muitas leituras,
me ladeia e observa.
É coroada pela máquina de escrever
que foi de meu pai
e me olha lá de cima.

Quando ele morreu
me foi perguntado o que eu queria dele.
Pedi a máquina, onde não escrevo,
mas que me abençoa.
Queria algo que guardasse
o toque de suas mãos.
Queria também palavras escritas,
grafadas com sua letra e lamento
não ter salvo as fichas
com os nomes poéticos das vacas
da fazenda Olhos d'água.

Em minha oficina uso
as ferramentas que herdei.
O gosto pela profundeza,
pelas palavras e história
ganhei de minha mãe;
também certa tristeza e o silêncio.
Impulso para entrar no mundo,
o sonho de conquistar grandes coisas
e um otimismo por vezes irrefreável,
estes recebi de meu pai.
O conhecimento sobre os caminhos de dentro
é decifração de meu próprio mapa,
percurso repetido
de me perder
e, de novo, ter que me buscar.

Fotografias de meus filhos,
obras feitas por suas mãos,
me ancoram ao tempo presente
e ao amor.


Pequenos objetos impregnados de afeto,
lembranças de estados d'alma;
o vaso de flores de maio,
as preferidas de minha avó;
janelas que arrematam
recortes de árvores e céu –
todos compõem meu espaço,
servem de pouso à vista,
repouso
para o nada pensar.

Componho melodias de silêncio.
Brotam do passado,
seguem ao futuro.
Aqui, só ser.
Aqui, sou.

14 de mar. de 2012

Licença de Débora Siqueira Bueno



Quando nasci eu era roxa. 
Não sei se havia anjos 
mas respirei fundo, 
recebi minha missão. 

Falta de ar conheço bem, 
me ensinou a espera. 
Falta de amor graças a Deus não tive muita, 
no ter e não ter fui me fazendo. 

Tão sempre a falta. 
Apesar das pernas das moças, 
despeito o cheiro bom dos moços, 
desejo, de contínuo se escapa. 

Meu nome quer dizer abelha – 
aquela que sempre trabalha. 
Desde o tempo que a memória alcança 
amanheço e entardeço no cuidado. 

Parece dom, mas é sina mineral 
buscar o que advém e é profundeza; 
separar pedra e entulho, encontrar beleza 
oculta na vastidão do sofrimento. 

Quero traçar de novo o meu destino, 
peço licença pra mudar de lavra. 
De agora em diante, carrego a bateia 
para lidar no garimpo das palavras.

João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)