22 de mar. de 2007

Ouro de Tolo :: Raul Seixas

Eu devia estar contente
Porque eu tenho um emprego
Sou um dito cidadão respeitável
E ganho quatro mil cruzeiros
Por mês

Eu devia agradecer ao Senhor
Por ter tido sucesso
Na vida como artista
Eu devia estar feliz
Porque consegui comprar
Um Corcel 73

Eu devia estar alegre
E satisfeito
Por morar em Ipanema
Depois de ter passado fome
Por dois anos
Aqui na Cidade Maravilhosa

Ah!
Eu devia estar sorrindo
E orgulhoso
Por ter finalmente vencido na vida
Mas eu acho isso uma grande piada
E um tanto quanto perigosa

Eu devia estar contente
Por ter conseguido
Tudo o que eu quis
Mas confesso abestalhado
Que eu estou decepcionado

Porque foi tão fácil conseguir
E agora eu me pergunto "E daí?"
Eu tenho uma porção
De coisas grandes pra conquistar
E eu não posso ficar aí parado

Eu devia estar feliz pelo Senhor
Ter me concedido o domingo
Pra ir com a família
No Jardim Zoológico
Dar pipoca aos macacos

Ah!
Mas que sujeito chato sou eu
Que não acha nada engraçado
Macaco, praia, carro
Jornal, tobogã
Eu acho tudo isso um saco

É você olhar no espelho
Se sentir
Um grandessíssimo idiota
Saber que é humano
Ridículo, limitado
Que só usa dez por cento
De sua cabeça animal

E você ainda acredita
Que é um doutor
Padre ou policial
Que está contribuindo
Com sua parte
Para o nosso belo
Quadro social

Eu é que não me sento
No trono de um apartamento
Com a boca escancarada
Cheia de dentes
Esperando a morte chegar

Porque longe das cercas
Embandeiradas
Que separam quintais
No cume calmo
Do meu olho que vê
Assenta a sombra sonora
De um disco voador


21 de mar. de 2007

O MOCHO E A COTOVIA :: JESÚS SEPÚLVEDA ( (Santiago de Chile, 1967)

Bosh 
O mocho lê William Carlos Williams em espanhol
A cotovia um artigo sobre Pinochet em inglês

O mocho e a cotovia dormem juntos todas as noites do ano
Preparam cuidadosamente a ceia

Dançam tango / Tomam café
Jamais se embriagam nem fumam em excesso

Correm quatro ou cinco vezes por semana
Ele deixou o cigarro ela o estresse

O mocho se emociona quando escuta Gardel 
Não importa que fosse argentino ou cafetão de bairro

A cotovia dança como louca 
quando toca no estéreo Ani di Franco (seu último CD) 
Move os braços
Canta

O mocho se veste de negro
A cotovia lustra seus sapatos
Há manhãs muito geladas quando correm com suas luvas

Ninguém sabe matemáticas
Quantos quilômetros são 6 milhas?
E quantos pares são três moscas?

Neste poema o mocho sai primeiro
A cotovia corre ao banho
Todas as manhãs caem maçãs 
Na lua não há maçãs

A cotovia chama no telefone
Corre ao supermercado / Compara os preços 
O mocho limpa

E trabalham / sim que trabalham
Duro todo o ano 
Dormem da noite à manhã 
Depois trabalham

Comem pão / Bebem vinho
Com a ceia se alimentam

O general faz artesanato com a morte
Williams emudece

O mocho e a cotovia dormem
Correm

Se protegem do frio
e da inquietude

O mocho e a cotovia
Às vezes há dias em que dói despertar



Tradução: Claudio Daniel


 mocho ou  coruja :  Ambos são aves de rapina noturnas, têm hábitos semelhantes e pertencem à mesma ordem (Strigiformes) e à mesma família (Strigidae). 

17 de mar. de 2007

Orides de Lourdes Teixeira Fontela (São João da Boa Vista, 1940 — Campos do Jordão, 1998)

Christian Schloe
Os pássaros
retornam
sempre e 
sempre.
O tempo cumpre-se. Constrói-se
a evanescente forma
ser
ritmo.
Os pássaros
retornam. Sempre os
pássaros
A infância volta devagarinho.

16 de mar. de 2007

SALMO:: Paul Celan

Ninguém nos molda de novo com terra e barro,

ninguém evoca o nosso pó.

Ninguém.


Louvado sejas, Ninguém.

Por ti queremos

florescer.

Ao teu

encontro.


Um nada

éramos nós, somos, continuaremos

sendo, florescendo:

a rosa-de-nada, a

rosa-de-ninguém.


Com estilete claralma,

o estame alto-céu,

a coroa rubra

da palavra púrpura, que cantamos

sobre, oh, sobre

o espinho.


A rosa-de-ninguém. 1963



João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)