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19 de mai. de 2015

O Gato :: Charles Baudelaire (1821-1867)

Picasso
É no meu cérebro que se passeia,
Como no seu apartamento,
Um gato doce e atraente.
Mal o consigo ouvir, se mia,

Porque o seu timbre é tão discreto;
Mas a voz, calma ou iracunda,
É sempre rica e bem profunda.
É o seu encanto e o seu segredo.

A voz, que goteja e se infiltra
No meu fundo mais tenebroso,
Enche-me, qual verso copioso,
E satisfaz-me como um filtro.

Adormeço os males cruéis,
Ela contém todos os extâses;
E pra dizer as maiores frases
Não necessita de palavras.

Não, não exista arco que morda
O meu peito, raro instrumento,
E faça majestosamente
Cantar essa vibrante corda,

Como a tua voz, ó misterioso
Gato seráfico, tão estranho,
No qual tudo é, como num anjo,
Tão subtil como harmonioso!

Tradução: Fernando Pinto do Amaral
As Flores do Mal. Editora Assírio e Alvim. 1992

16 de out. de 2014

Informe sobre caricias : Mario Benedetti

Fernand Khnopff
1
La caricia es un lenguaje
si tus caricias me hablan
no quisiera que se callen

2
La caricia no es la copia
de otra caricia lejana
es una nueva versión
casi siempre mejorada

3
Es la fiesta de la piel
la caricia mientras dura
y cuando se aleja deja
sin amparo a la lujuria

4
Las caricias de los sueños
que son prodigio y encanto
adolecen de un defecto
no tienen tacto

5
Como aventura y enigma
la caricia empieza antes
de convertirse en caricia

6
Es claro que lo mejor
no es la caricia en sí misma
sino su continuación

3 de fev. de 2013

O vento que vinha trazendo a Lua de Rubem Braga


Eu estava no apartamento de um amigo, no Posto 6, e quando cheguei à janela vi a Lua: já havia nascido toda e subido um pouco sobre o horizonte marinho, avermelhada. Meu amigo fora lá dentro buscar alguma coisa e eu ficara ali, sozinho, naquela janela, presenciando a ascensão da Lua cheia.
Havia certamente todos os ruídos da cidade lá embaixo, havia janelas acesas de apartamentos. Mas a presença da Lua fazia uma espécie de silêncio superior e de majestade plácida; era como se Copacabana regressasse ao seu antigamente sem casas, talvez apenas alguma cabana de índio humilde entre cajueiros e pitangueiras e árvores de mangue, talvez nem cabana de índio nenhum, índio não iria morar ali sem ter perto água doce. Mas dava essa impressão de coisa antiga, esse mistério remoto. Era um acontecimento silencioso e solene pairando na noitinha e no tempo, alguma coisa que irmana o homem e o bicho, a árvore e a água – a Lua.
Foi então que passou por mim a brisa da terra; e essa brisa que esbarrava em tantos ângulos de cimento para chegar até mim ainda tinha, apesar de tudo, um vago cheiro de folhas, um murmúrio de grilos distantes, um segredo de terra anoitecendo.
E pensei em uma pessoa; e sonhei que poderíamos estar os dois juntos, vendo a ascensão da Lua; deslembrados, inocentes, puros, na doçura da noitinha como dois bichos mansos vagamente surpreendidos e encantados perante o mistério e a beleza eterna da Lua.
fonte: Braga, Rubem. Um cartão de Paris.  Record, 1997. p. 126

27 de dez. de 2012

Inscrição de Cecilia Meireles

Sou entre flor e nuvem, 
Estrela e mar. 
Por que havemos de ser unicamente humanos, 
Limitados em chorar? 

Não encontro caminhos 
Fáceis de andar. 
Meu rosto vário desorienta as firmes pedras 
Que não sabem de água e de ar. 

E por isso levito. 
É bom deixar 
Um pouco de ternura e encanto indiferente 
de herança, em cada lugar. 

Rastro de flor e estrela, 
Nuvem e mar. 
Meu destino é mais longe e meu passo mais rápido: 
A sombra é que vai devagar.

9 de fev. de 2012

Voltar aos 17 de Violeta Parra


O rapto de Psique (1895) William-Adolphe Bouguereau

De par a par la ventana
Se abrió como por encanto,
Entró el amor con su manto
Como una tibia mañana,
Al son de su bella diana
Hizo brotar el jazmín,
Volando cual serafín
Al cielo le puso aretes
Y mis años en dicisiete
Los convirtió el querubín 
......................................................................................

De par em par a janela se abriu como por encanto
Entrou o amor com seu manto como uma cálida manhã
Ao som de sua bela alvorada fez brotar o jasmim
Voando qual serafim ao céu lhe pôs brincos
Meus anos em 17 os converteu o querubim


20 de out. de 2011

Dia perfeito

Dia perfeito em que tudo amadurece. Um raio. Eu, como você, morri. Eu, como você, estou viva. E envelheço nas minhas decisões. Envelheço tentando domar cada elemento vital do meu corpo. Renasço. Danço. Trago o encantamento e a felicidade, que deixaram o berço dilacerado pela dor. Tu te tornas obra de arte. Tu dizes sim ao mundo. E a cidade se alegra por estarmos aqui. E a cidade se alegra por suportarmos tanta verdade sem sucumbir.  Daniela Lima
fonte: www.cronopios.com.br

11 de set. de 2011

Brigitte Bardot




Quatro poemas

encontrados no livro de memórias de Brigitte Bardot
em busca de alívio pus-me a fazer uma coleção de palavras
agradáveis de se pronunciar -
é verdade que algumas nos enchem a boca
como se fossem de caramelo
há palavras que repetimos uma segunda vez
de tal forma são belas -
frequentemente tem um significado
banal
ou mesmo prosaico
mas sua substância é redonda, sensual, nutritiva
descobri a primeira palavra de minha coleção
pronunciando yupala
que prazer dizê-lo e repeti-lo
yupala
depois desencavei profiteroles
enche-se a boca quando se diz isso
em seguida foi douillette
é doce, redondo, dissolve-se na boca
douillette
mais tarde conheci pragmatique -
um pouco seca mas muito encantadora

Fabrício Corsaletti In Ilustríssima, FSP, setembro 2011

21 de jun. de 2009

Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento

Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós. Assim um passarinho nas mãos de uma criança é mais importante para ela do que a Cordilheira dos Andes. Que um osso é mais importante para o cachorro do que uma pedra de diamante. E um dente de macaco da era terciária é mais importante para arqueólogos do que a Torre Eifel. (Veja que só um dente de macaco!) Que uma boneca de trapos que abre e fecha os olhinhos azuis nas mãos de uma criança é mais importante que o Empire State Building. Que o cu de uma formiga é mais importante para o poeta do que uma Usina Nuclear. Sem precisar medir o ânus da formiga. Que o canto das águas e das rãs nas pedras é mais importante para os músicos que os ruídos dos motores da Fórmula 1. Há um desagero em mim de aceitar essas medidas. Porém não sei se isso é um defeito do olho ou da razão. Se é defeito da alma ou do corpo. Se fizeram algum exame mental em mim por tais julgamentos, vão encontrar que eu gosto mais de conversar sobre restos de comida com as moscas do que com homens doutos.
Manoel de Barros 

27 de abr. de 2008

Tempo da delicadeza


Todo o Sentimento

Preciso não dormir
Até se consumar
O tempo da gente.
Preciso conduzir
Um tempo de te amar,
Te amando devagar e urgentemente.
Pretendo descobrir
No último momento
Um tempo que refaz o que desfez,
Que recolhe todo sentimento
E bota no corpo uma outra vez.
Prometo te querer
Até o amor cair
Doente, doente...
Prefiro, então, partir
A tempo de poder
A gente se desvencilhar da gente.
Depois de te perder,
Te encontro, com certeza,
Talvez num tempo da delicadeza,
Onde não diremos nada;
Nada aconteceu.
Apenas seguirei
Como encantado ao lado teu.
Chico Buarque


João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)