12 de out. de 2015

Minhas vidas passadas :: Luiz Ruffato

Sou daquelas pessoas que guardam lembranças bastante remotas. Algumas, tão distanciadas, que vejo-me incapaz de identificar com exatidão em que circunstância ocorreram – se é que ocorreram. Sim, porque a memória é uma narrativa concebida a partir de recordações evocadas por cheiros, imagens, barulhos, gostos ou sensações que impregnam a pele. Ao longo da nossa história vivenciamos tantas experiências, e tão diversas, que tornaria impossível acumulá-las como sucederam. Então, para não sobrecarregarmo-nos, penduramos esses acontecimentos em fios tênues que, aos poucos, rompem-se, convertendo-se em vestígios esparramados às nossas costas.

A realidade não deixa marcas no corpo, mas impressões fugidias na mente, pois a experiência é sempre subjetiva. Por exemplo: embora filhos da mesma mãe e do mesmo pai, minha irmã e eu descrevemos personagens diferentes como pai e mãe, porque nos relacionamos com eles de maneira diversa. Além disso, a memória atualiza-se: sucedidos que tiveram determinado significado num momento ganham outra relevância no momento seguinte, porque aquele que fui não é este que sou agora. Mais ou menos como quando nos deparamos com um bom livro, cuja apreensão transmuda-se a cada nova leitura. As palavras não se modificam, mas altera-se nosso entendimento do mundo na medida em que escoa o tempo.

Como conservamos dos episódios somente fragmentos, não hesitamos em incorporar lembranças alheias para compor nossas próprias recordações. Relatos de parentes sobre nossa infância, histórias entreouvidas de amigos a respeito de suas famílias, cenas assistidas em filmes, passagens de romances, nossa imaginação, tudo serve para preencher os hiatos e dar sentido à narrativa, que, partindo da invocação de um evento concreto situado no passado, desenvolve-se como fabulação. Se selecionamos os fatos que permanecem arquivados em chaves sensoriais, se o presente contamina o passado, se incorporamos ao nosso os relatos alheios, podemos concluir que a memória, assentada em reconstruções, não contabiliza reminiscências individuais, mas experiências subjetivas. O que fomos ontem existe apenas no que somos hoje – o passado é uma invenção projetada desde o futuro, eternizado no agora.

Apenas duas fotografias cristalizaram meu rosto na infância. O retrato mais antigo exibe um rosto triste ilustrando um corpo franzino revestido de roupas pobres: calção de tecido ordinário, blusa de flanela mal enjambrada, chinelos de dedo gastos. Tenho cinco anos, estou em frente a uma casa longe do meu bairro, ao lado de um casal que desconheço, imerso na tarde fria para sempre perdida. O outro retrato revela duas crianças, uma delas, enfiada na melhor roupa domingueira, exibe os mesmos olhos melancólicos, as mesmas pernas finas, a mesma desolação. Tenho seis anos, estou num estúdio, porque é aniversário do meu colega, Teodorico – como fazíamos anos na mesma data, a mãe dele, de pena, ajuntou-me ao flagrante.

Que passado reconstruo quando avoco o instante dessas fotografias? Estou lá, admito: reconheço-me, mas estranho-me, décadas me separam de mim mesmo. Aquela criança que existiu em mim subsiste no adulto apenas como hipótese. Cada período da minha vida engendrou um indivíduo distinto, que, embora alicerçado em bases comuns, edificou sua própria história. Para reconhecer-me no que fui, reconstituo-me com o manancial de que sou estruturado hoje. Por isso, cada recordação dos dias antigos é a lembrança de uma das minhas várias vidas passadas.

fonte: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/01/13/opinion

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