24 de fev. de 2010

A não-aceitação de Clarice Lispector


foto: Clarice Lispector 
Desde que começou a envelhecer realmente começou a querer ficar em casa. Parece-me que achava feio passear quando não se era mais jovem: o ar tão limpo, o corpo sujo de gordura e rugas. Sobretudo a claridade do mar como desnuda. Não era para os outros que era feio ela passear, todos admitem que os outros sejam velhos. Mas para si mesma. Que ânsia, que cuidado com o corpo perdido, o espírito aflito nos olhos, ah, mas as pupilas essas límpidas.
Outra coisa: antigamente no seu rosto não se via o que ela pensava, era só aquela face destacada, em oferta. Agora, quando se vê sem querer ao espelho, quase grita horrorizada: mas eu não estava pensando nisso! Embora fosse impossível e inútil dizer em que rosto parecia pensar, e também impossível e inútil dizer no que ela mesma pensava. Ao redor as coisas frescas, uma história para a frente, e o vento, o vento... Enquanto seu ventre crescia e as pernas engrossavam, e os cabelos se haviam acomodado num penteado natural e modesto que se formara sozinho. (publicada originalmente em 17 de maio de 1969)
Lispector, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 291

15 de fev. de 2010

ANINHA E SUAS PEDRAS


Não te deixes destruir...
Ajuntando novas pedras
e construindo novos poemas.
Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.
Faz de tua vida mesquinha
um poema.
E viverás no coração dos jovens
e na memória das gerações que hão de vir.
Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
Toma a tua parte.
Vem a estas páginas
e não entraves seu uso
aos que têm sede.

14 de fev. de 2010

O que se não pode ter!


Nuvem do céu, que pareces 

Tudo quanto a gente quer, 
Se tu, ao menos, me desses 
O que se não pode ter!


Fernando Pessoa in Quadras ao gosto popular 

11 de fev. de 2010

Viajantes


O filósofo romeno radicado na França Émil Cioran (século 20) tinha por hábito passar o verão nas praias da Normandia e Bretanha. Num desses momentos, ele escreve que os "novos bárbaros" (os turistas) tomaram o lugar dos "viajantes", pessoas que amam conhecer o mundo pra se "espantar" com ele,

29 de jan. de 2010

Enredando


El amor con sus esmeros al viejo lo vuelve niño
Y al malo sólo el cariño lo vuelve puro y sincero.
Se va enredando, enredando
Como en el muro la hiedra
Y va brotando, brotando
Como el musguito en la piedra
Como el musguito en la piedra, ay si, si, si.
Violeta Parra 

15 de jan. de 2010

PRECE DE MINEIRO NO RIO



Conserva em mim ao menos a metade
do que fui de nascença e a vida esgarça:
não quero ser um móvel num imóvel,
quero firme e discreto o meu amor,
meu gesto seja sempre natural,
mesmo brusco ou pesado, e só me punja
a saudade da pátria imaginária.
Essa mesma, não muito. Balançando
entre o real e o irreal, quero viver
como é de tua essência e nos segredas,
capaz de dedicar-me em corpo e alma,
sem apego servil ainda o mais brando.

Carlos Drummond de Andrade

17 de dez. de 2009

Silêncio


"Sim, existe hoje um grande medo do silêncio. Em um grupo, quando todos se calam, é preciso que alguém diga algo pois isso tem peso. Nas sociedades africanas que conheço, não há o medo do silêncio, pois não existe o sentimento da ausência: o silêncio está sendo ocupado, alguém está falando. Na verdade, trata-se da relação com a explicação religiosa de que alguém está presente sempre - até a mais absoluta solidão é povoada. Isso retira o medo do vazio, da solidão, algo que persegue nossa cultura ocidental." Mia Couto

9 de nov. de 2009

Natureza e sobreviência


Dersu retrata de maneira poética e sensível as diferenças culturais entre um caçador  e um pesquisador (topógrafo) russo quanta se trata de natureza e sobrevivência. A fotografia é belíssima, mostrando as paisagens naturais da Sibéria. Impressionou-me na época.

1 de nov. de 2009

Joan Miro - Mujer que se bañaba


Antes do nome


A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,
foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça, infrequentíssimos,
se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.
Puro susto e terror.
Adélia Prado, "Bagagem"

25 de out. de 2009

Paciência de Lenine






Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma
Até quando o corpo pede um pouco mais de alma
A vida não para

Enquanto o tempo acelera e pede pressa
Eu me recuso faço hora vou na valsa
A vida é tão rara

Enquanto todo mundo espera a cura do mal
E a loucura finge que isso tudo é normal
Finjo ter paciência
E o mundo vai girando cada vez mais veloz
A gente espera do mundo e o mundo espera de nós
Um pouco mais de paciência

Será que é tempo que lhe falta pra perceber
Será que temos esse tempo pra perder
E quem quer saber
A vida é tão rara (Tão rara)

Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma
Até quando o corpo pede um pouco mais de alma
Eu sei, a vida não para (a vida não para não)


Princípio




21 de out. de 2009

O que sou então? de Clarice Lispector

imagem: Clarice Lispector 
O que sou então? Sou uma pessoa que tem um coração que por vezes percebe, sou uma pessoa que pretendeu pôr em palavras um mundo ininteligível e um mundo impalpável. Sobretudo uma pessoa cujo coração bate de alegria levíssima quando consegue em uma frase dizer alguma coisa sobre a vida humana ou animal.

18 de out. de 2009

Questão de pontuação de João Cabral de Melo Neto


Todo mundo aceita que ao homem

cabe pontuar a própria vida:

que viva em ponto de exclamação
(dizem: tem alma dionisíaca);

viva em ponto de interrogação

(foi filosofia, ora é poesia);

viva equilibrando-se entre vírgulas
e sem pontuação (na política):

o homem só não aceita do homem

que use a só pontuação fatal:

que use, na frase que ele vive
o inevitável ponto final.

4 de out. de 2009

Chagall - Dança


Mandamentos de Fernando Pessoa


1. Não tenhas opiniões firmes, nem creias demasiadamente no valor de tuas opiniões.
2. Sê tolerante, porque não tens a certeza de nada.
3. Não julgues ninguém, porque não vês os motivos, mas só os actos...
4. Espera o melhor e prepara-te para o pior.
5. Não mates nem estragues, porque, como não sabes o que é a vida, excepto que é um mistério, não sabes que fazes matando ou estragando, nem que forças desencadeias sobre ti mesmo se estragares ou matares.
6. Não queiras reformar nada, porque, como não sabes a que leis as coisas obedecem, não sabes se as leis naturais estão de acordo, ou com a justiça, ou, pelo menos, com a nossa ideia de justiça.
7. Faz por agir como os outros e pensar diferentemente deles. Não cuides que há relação entre agir e pensar. Há oposição. Os maiores homens de acção têm sido perfeitos animais na inteligência. Os mais ousados pensadores têm sido incapazes de um gesto ousado ou de um passo fora do passeio.
Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990

Imperfeita

Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse

"Júbilo, memória, noviciado da paixão" , de Hilda Hilst