15 de jul. de 2012

O homem velho de Caetano Veloso



O homem velho deixa a vida e morte para trás
Cabeça a prumo, segue rumo e nunca, nunca mais
O grande espelho que é o mundo ousaria refletir os seus sinais
O homem velho é o rei dos animais

A solidão agora é sólida, uma pedra ao sol
As linhas do destino nas mãos a mão apagou
Ele já tem a alma saturada de poesia, soul e rock'n'roll
As coisas migram e ele serve de farol

A carne, a arte arde, a tarde cai
No abismo das esquinas
A brisa leve traz o olor fulgaz
Do sexo das meninas

Luz fria, seus cabelos têm tristeza de néon
Belezas, dores e alegrias passam sem um som
Eu vejo o homem velho rindo numa curva do caminho de Hebron
E ao seu olhar tudo que é cor muda de tom

Os filhos, filmes, ditos, livros como um vendaval
Espalham-no além da ilusão do seu ser pessoal
Mas ele dói e brilha único, indivíduo, maravilha sem igual
Já tem coragem de saber que é imortal

14 de jul. de 2012

O conto da ilha desconhecida de José Saramago (parte)

(...)  nem seria preciso dizer o que ele pensou, É bonita, mas o que ela pensou, sim, Vê-se bem que só tem olhos para a ilha desconhecida, aqui está como as pessoas se enganam nos sentidos do olhar, sobretudo ao princípio. Ela entregou-lhe uma vela, disse, Até amanhã, dorme bem, ele quis dizer o mesmo doutra maneira, Que tenhas sonhos felizes, foi a frase que lhe saiu, daqui a pouco, quando lá estiver em baixo, deitado no seu beliche, vir-lhe-ão à ideia outras frases, mais espirituosas, sobretudo mais insinuantes, como se espera que sejam as de um homem quando está a sós com uma mulher. Perguntava-se se já dormiria, se teria tardado a entrar no sono, depois imaginou que andava à procura dela e não a encontrava em nenhum sítio, que estavam perdidos os dois num barco enorme, o sonho é um prestidigitador hábil, muda as proporções das coisas e as suas distâncias, separa ás pessoas, e elas estão juntas, reúne-as, e quase não se vêem uma à outra, a mulher dorme a poucos metros e ele não soube como alcançá-la, quando é tão fácil ir de bombordo a estibordo.(...)

12 de jul. de 2012

Dos Gardenias - Buena Vista Social Club


Dos gardenias para ti
Con ellas quiero decir:
Te quiero, te adoro, mi vida
Ponles toda tu atención
Que seran tu corazón y el mio

Dos gardenias para ti
Que tendrán todo el calor de un beso
De esos besos que te dí
Y que jamás te encontrarán
En el calor de otro querer

A tu lado vivirán y se hablarán
Como cuando estás conmigo
Y hasta creerán que se diran:
Te quiero.

Pero si un atardecer
Las gardenias de mi amor se mueren
Es porque han adivinado
Que tu amor me ha traicionado
Porque existe otro querer.

Livro de Cabeceira


11 de jul. de 2012

É fácil desistir de nossos sonhos de Contardo Calligaris

Leonid Afremov

(...) O fato é que somos complacentes com as expectativas dos outros (que amamos ou não) à condição que elas nos convidem a desistir de nosso desejo. É isso mesmo, a frase que precede não saiu errada: adoramos nos conformar (ou nos resignar) às expectativas que mais nos afastam de nossos sonhos. Aparentemente, preferimos ser o romancista potencial que foi impedido de mostrar seu talento a ser o romancista que tentou e revelou ao mundo que não tinha talento. Desistindo de nossos sonhos, evitamos fracassar nos projetos que mais nos importam.
Em suma, da próxima vez que você se queixar de que seu casal afasta você de seus sonhos, lembre-se: foi você quem o escolheu.
E mais um conselho: se você encontrar alguém disposto a caminhar na chuva do seu lado, não fuja; molhe-se.

fonte: Folha de São Paulo, quinta-feira, 07 de julho de 2011

10 de jul. de 2012

Silêncio


Duermen en mi jardin
las blancas azucenas, los nardos y las rosas,
Mi alma muy triste y pesarosa
a las flores quiere ocultar su amargo dolor.

Yo no quiero que las flores sepan
los tormentos que me da la vida.
Si supieran lo que estoy sufriendo
por mis penas llorarían también.

Silencio, que están durmiendo
los nardos y las azucenas.
No quiero que sepan mis penas
porque si me ven llorando morirán.

Música de Rafael Hernandez e Ibrahim Ferrer

Moça no jardim

imagem: Alice Wellinger

9 de jul. de 2012

Canto de um Povo de um Lugar - Caetano Veloso


Egon Schiele


Todo dia o sol levanta
E a gente canta
Ao sol de todo dia

Fim da tarde a terra cora
E a gente chora
Porque finda a tarde

Quando a noite a lua mansa
E a gente dança
Venerando a noite

Madrugada, céu de estrelas
E a gente dorme
sonhando com elas.

Mosaico


8 de jul. de 2012





"Esta planta é mui tenra e não muito alta, não tem ramos senão umas fôlhas que serão seis ou sete palmos de comprido. A fruita se chama banana. Parecem-se na feição com pepinos e criam-se em cachos. (...) Esta fruta é mui saborosa, e das boas, que há na terra: tem uma pele como de figo (ainda que mais dura) a qual lhe lançam fora quando a querem comer: mas faz dano à saúde e causa fevre a quem se demanda dela" 
In: GANDAVO, Pero de Magalhães, ?-1579 Historia da prouincia sa[n]cta Cruz a que vulgarme[n]te chamam Brasil / feita por Pero Magalhães de Gandauo, dirigida ao muito Illsre s[e]nor Dom Lionis P[ereir]a gouernador que foy de Malaca e das mais partes do Sul na India. - Impresso em Lisboa : na officina de Antonio Gonsaluez : vendense em casa de Ioão lopez liureiro na rua noua, 1576. - 48 f. : il. ; 4º (18 cm)

7 de jul. de 2012

Amor, então de Paulo Leminski



Amor, então,
também, acaba?
Não, que eu saiba.
O que eu sei
é que se transforma
numa matéria-prima
que a vida se encarrega
de transformar em raiva.
Ou em rima.


6 de jul. de 2012

Assim o amor de Sophia de Mello Breyner Andresen

Pot Pourri de Herbert James Draper (1863 – 22 September 1920) 

Assim o amor
Espantando meu olhar com teus cabelos
Espantando meu olhar com teus cavalos
E grandes praias fluidas avenidas 
Tardes que oscilavam demoradas 
E um confuso rumor de obscuras vidas 
E o tempo sentado no limiar dos campos 
Com seu fuso sua faca e seus novelos 
Em vão busquei eterna luz precisa

in Geografia, 1967

4 de jul. de 2012

Onde mora a Felicidade de Fabrício Carpinejar



Aos 106 anos, Felicidade mora sozinha, paga as contas e ainda tem tempo para sonhar e se reinventar. Fotos Tadeu Vilani.


A Felicidade mora na Rua João Goulart, em Santana do Livramento, cidade de 83 mil habitantes, a 487 quilômetros de Porto Alegre, na fronteira com o Uruguai.
Ela tem um rostinho de violeta, de vaso miúdo, o andar curvado e a bondade brilhosa de pele. Calça sapatos pretos com meia calça e seus cabelos grisalhos são espetados.
– Fiquei magrinha, mirrada, terminou o sangue, a carne, sou só osso e olho.
Felicidade Camargo Machado completou 106 anos. Reside sozinha, paga as próprias contas com o dinheirinho da viuvez, varre o pátio, prepara sua comida e não precisa de mais ninguém.
– Quando casei, não podia sair. Ou tinha que cuidar dos filhos ou do marido. Hoje saio de qualquer jeito: não fico mais presa por homem nenhum.
Felicidade não sabe ler nem escrever, mas é de uma sabedoria aforística, como se fosse uma página perdida do Evangelho.
– Já tive tempo de aprender tudo, desaprender tudo e agora estou aprendendo de novo.
Felicidade é a única sobrevivente dos 15 irmãos.
– Semente solitária, a última para fechar plantação.
Felicidade é um anjo que sobreviveu ao inferno. Seu marido Ernesto foi pego em flagrante com mulher casada e assassinado pelo homem traído.
– Perdi o jeito de rir de tanto sofrimento. Vou rir por engano.
Felicidade diz que os pássaros deram para entrar pela janela da sala.
– Até pareço flor com mel.
Felicidade estragou a certidão de nascimento, guarda pedaços colados com manteiga numa tabuinha.
Felicidade passou a vida inteira trabalhando como lavadeira. Atendia 10 famílias na cidade. Suas mãos espumam.
– O tanque de pedra é meu conselheiro.
Ela detesta máquina de lavar, nunca teve, nunca terá. Alimenta manhas de seu ofício. Conserva todas as barras amarelas de sabão no mesmo pote, no aproveitamento total das sobras.
– Quando acaba o fim, posso inventar novo fim com as paredes do sabão no vidro.
Felicidade é do tempo que se lavava roupas no rio. E andava com trouxas na cabeça.
– Gosto de trabalhar à moda de céu aberto. Já andei pelas campanhas sem fim do pago. No Rio Grande tudo é mais fácil de existir.
Felicidade tem forças sigilosas nas veias. Soca, duro, as camisas, esfrega, bate o pano com violência. É uma boxeadora dos botões.
– A limpidez vem do movimento da água.
Felicidade é poeta e nunca leu um livro de poemas.
– Poema é cachorro lambendo meu joelho esfolado.
Felicidade preserva o melhor do dia para ir ao supermercado e conversar com as balconistas. Os estranhos ensinaram a se cuidar mais do que seus familiares.
– As gurias são minhas colegas de escola.
Felicidade existe? Às vezes acho que estou delirando e ela é sonho avulso de uma criança ou uma adolescente extraviada em alguma velhice.
Felicidade mora dentro de uma casa de madeira que fica dentro de uma casa de alvenaria. Ao invés da tradicional reforma, construiu uma casa no interior da outra. A porta antiga da frente abre para o quarto.
– Assim que somos: a infância dentro do adulto.
Felicidade acorda ao meio-dia e se acende de madrugada. Limpa os móveis ouvindo Roberto Carlos. Prefere banho de bacião e o luxo de despejar canecas de água quente no corpo. Aprecia um churrasquinho com bolacha maria e café preto.
Felicidade é esquisita de bonita. Não lembra as pessoas. E não sofre com isso.
– Sorte delas que lembro de mim para poder conversar.
Felicidade põe pinturinha nas mãos para assistir à novela e acenar aos artistas da tela.
Felicidade passeia com sua bolsa de croché pela Praça Internacional.
Felicidade é.
– Estou feliz para ser feliz um dia.

Publicado no jornal Zero Hora 5/12/2011 Porto Alegre, Edição N° 16933

3 de jul. de 2012

Da Vocação






Na vocação para a vida está incluído o amor, inútil disfarçar, amamos a vida. E lutamos por ela dentro e fora de nós mesmos. Principalmente fora, que é preciso um peito de ferro para enfrentar essa luta na qual entra não só fervor mas uma certa dose de cólera, fervor e cólera. Não cortaremos os pulsos, ao contrário, costuraremos com linha dupla todas as feridas abertas. E tem muita ferida porque as pessoas estão bravas demais, até as mulheres, umas santas, lembra?
Costurar as feridas e amar os inimigos que odiar faz mal ao fígado, isso sem falar no perigo da úlcera, lumbago, pé frio. Amar no geral e no particular e quem sabe nos lances desse xadrez-chinês imprevisível. Ousar o risco. Sem chorar, aprendi bem cedo os versos exemplares, não chores que a vida/ é luta renhida. Lutar com aquela expressão de criança que vai caçar borboleta, ah, como brilham os olhos de curiosidade. Sei que as borboletas andam raras mas se sairmos de casa certos de que vamos encontrar alguma… O importante é a intensidade do empenho nessa busca e em outras. Falhando, não culpar Deus, oh! por que Ele me abandonou? Nós é que O abandonamos quando ficamos mornos. Quando a vocação para a vida começa a empalidecer e também nós, os delicados, os esvaídos. Aceitar o desafio da arte. Da loucura. Romper com a falsa harmonia, com o falso equilíbrio e assim, depois da morte – ainda intensos – seremos um fantasminha claro de amor.”

fragmento de  A disciplina do amor, Lygia Fagundes Telles

2 de jul. de 2012

Mistério do Planeta - Novos Baianos


Vou mostrando como sou
E vou sendo como posso
Jogando meu corpo no mundo
Andando por todos os cantos
E pela lei natural dos encontros
Eu deixo e recebo um tanto
Passo aos olhos nus
Ou vestidos de lunetas
Passado, presente
Participo sendo o mistério do planeta
O tríplice mistério do stop
Que passo por e sendo ele
No que fica em cada um
No que sigo o meu caminho
E no ar que fez que assistiu
Abra um parênteses
Não se esqueça
Que independente disso
Eu não passo
De um malandro
De um moleque do Brasil
Que peço e dou esmolas
Mas ando e penso sempre
Com mais de um
Por isso ninguém vê
Minha sacola

1 de jul. de 2012

Trégua de Adélia Prado


Hoje estou velha como quero ficar.
Sem nenhuma estridência.
Dei os desejos todos por memória
e rasa xícara de chá.

29 de jun. de 2012

Os Mistérios do Ofício de Anna Akhmátova

 foto de Renata Alves 
De que servem exércitos de canções
e o encanto das elegias sentimentais? 
Para mim, na poesia, tudo tem de ser desmesurado, 
e não do jeito como todo mundo faz. 

Se vocês soubessem de que lixeira 
saem, desavergonhados, os versos, 
como dente-de-leão que brota ao pé da cerca, 
como a bardana ou o cogumelo. 

Um grito que vem do coração, o cheiro fresco de alcatrão, 
o bolor oculto na parede... 
E, de repente, a poesia soa, calorosa, terna, 
Para a minha e tua alegria. 


Tradução de Lauro Machado Coelho