16 de mai. de 2013

Crisma !


O que me encanta é a magia,
Que resiste ao nada que a sustenta
O que me seduz é a beleza,
Que resiste às carnes corroídas
O me diz é o carinho
Que resiste à ausência que se impõe ao toque.
.
O que sei é o que me sinto,
Belo, encantado, acolhido
Como a pérola da qual nada sabe a concha
Me resguardo em quem não me sabe.
Escondido, escandido, nada para nenhum olhar
.
Até que um pescador me colha e me revele,
Outra pérola em busca de uma menina
Que me fixe enfeite, enfeitiçada,
E me retorne ao nada donde parti.
.

15 de mai. de 2013

Fotografei você de Maria Camargo


-- Pai, me empresta a câmera?
-- De jeito nenhum.
-- Mas por quê?
-- Porque não.
-- Mas você nem usa mais!
-- Uso, sim.
-- Mentira, ela tá abandonada aqui. E imunda, olha...
-- Esquece, Maria.
Não esqueci. Talvez o diálogo não tenha sido exatamente assim --quem se lembra com pontos e vírgulas de uma conversa que aconteceu há mais de 25 anos?-- mas foi quase isso, ou poderia ter sido. A vida era analógica então, os sais de prata da película muito mais confiáveis para guardar memórias do que as nuvens do século que viria.
A velha Nikon F, objeto do meu desejo, já tinha tido seu tempo: com ela meu pai fotografou os relevos de madeira nos anos 60, a primeira mulher, Marie Louise, os filhos Cristóvão e Carlos. Depois, minha mãe muito jovem, as primeiras esculturas em mármore, meus olhos de bebê fixando a câmera. Inês e Irene chegaram depois, mas essas ele não fotografou --ou, talvez porque doesse muito, tenha preferido guardar segredo do que viu através da lente.
Minha infância já tinha acabado quando descobri a câmera aposentada no fundo do armário. A lente, cuidadosamente ornamentada por fungos, parecia obra da minha prima Clezinha, que me deu aulas de bordado lá no Ceará. Mas dos pontos de bordado eu não lembrava mais nada, só pensava em fotografar.
-- Mas como é que eu vou fazer o curso de fotografia?
-- Usa a sua câmera.
-- Ela é ruim demais, pai. E é automática, tem que ser uma manual. Pra treinar abertura, velocidade.
-- Então não faz o curso. Paciência.

Paciência não era o meu forte. Nas semanas que se seguiram, sempre às terças e quintas, eu religiosamente roubava a Nikon do armário. As aulas já estavam prestes a terminar quando o dono da câmera acabou na frente dela, posando pra mim. Seríssimo, nenhum esboço de sorriso no rosto.

-- Não vai demorar, vai?
-- Tenho que fazer várias versões, pra comparar depois.
-- Vamos logo com isso.
Demorou. Eu tinha que pensar antes de ajustar o foco, a velocidade --muitos passos lentos antes de apertar o disparador. A câmera ainda era uma estranha para mim. Ele, o meu modelo, também.
Estranhos embora íntimos, éramos só nós dois ali naquela sala ensolarada em Copacabana. Nós, a Nikon e mais umas tantas perguntas bailando no ar como a poeira no contraluz: de quanto tempo e de que diafragma eu precisava para a exposição perfeita? De quanto tempo precisava para chegar até ele, para entender o que ainda não entendia? Por que ele me negou a câmera, por que fingiu não perceber meus roubos programados, por que aceitou posar para mim? O que eu queria aprender de verdade quando montei o tripé na frente do meu pai e olhei para ele através da lente?
-- Chega, tenho mais o que fazer.
-- Espera.
-- Esperar o quê?
-- A luz. Tá ficando mais bonita.
Eu sabia: tinha um sorriso escondido ali, em algum lugar. Ele sempre tinha. Apertei o botão.

-- Posso te mostrar as fotos?
-- Que fotos?
-- Do Pará. Lá do filme.
O filme era "Brincando nos Campos do Senhor", do nosso querido amigo Hector Babenco. Fui visitar as filmagens um ano e meio depois da tarde do retrato. Trouxe de Belém um monte de rolinhos de filme para serem revelados, uma doença que peguei no Norte, como na música do Chico, e o princípio de uma história de amor que me daria um filho.
-- Bonitas.
-- As fotos?
-- Claro que são as fotos. O que mais podia ser?
-- Sei lá. As índias.
-- Muito boas. As fotos, não as índias.
-- Nossa. Será que vai chover?
Ele riu, eu ri, não choveu. Nem naquele dia, nem no seguinte --quando meu pai morreu, fazia sol. E uma luz danada de bonita.

fonte: Folha de São Paulo - Ilustríssima. 11/05/2013

Eucanaã Ferraz, "Rimas para Suzana"


O amor com que Suzana
rega as plantas do jardim.

Segue o mundo, segue a rua,
seque tudo até ao fim.

Suzana persiste, atenta; mais,
concentrada; mais, amorosa,

como se o universo fora
a erva, a orquídea, a rosa.

O amor com que Suzana
planta, replanta, vela,

como se cuidasse do tempo
e a água viesse dela.

Ao redor de seus cuidados
se ajunta de tudo a sede:

o alecrim, a bromélia,
um verde que não se mede.

O amor com que Suzana
se faz mãe e matinal,

matando a sede de azul
da montanha, do animal,

sede de água e carinho,
sede de tudo o que esteja

na quadra de seu jardim
ainda que seu jardim seja

a memória, o mundo todo.
O amor é o seu modo.

14 de mai. de 2013

Estou aqui sentado - ali o mar, as palmeiras de Eugénio de Andrade

foto: joerg lehmann

"Estou aqui sentado - ali o mar,
as palmeiras.
O leite fresco, o pão na mesa.
O gesto sempre igual
da luz, o mesmo olhar da ave.
Existe uma secreta harmonia
entre a luz e o mar,
a mesma provavelmente
entre a palmeira e a ave,
o leite e o pão.
E com a palavra, o seu
voo a prumo,
com a palavra qual é a relação?"

Eugénio de Andrade, "O Sal da Língua" in Poesia, 2ª ed., Porto, Fundação Eugénio de Andrade, 2005, pp 514-515.

Amber Alexander (Vermont, EUA)










13 de mai. de 2013

A flor com que a menina sonha de Cecília Meireles

HelgaMcL

A flor com que a menina sonha
Está no sonho?
Ou na fronha?

Sonho
Risonho:

O vento sozinho
No seu carrinho.

De que tamanho
Seria o rebanho?

A vizinha
Apanha
A sombrinha
De teia de aranha...

Na lua há um ninho
De passarinho.

A lua com que a menina sonha
É o linho do sonho
Ou a lua da fronha?

12 de mai. de 2013

Vietnã - Wislawa Szymborska (1923-2012, Nobel de Literatura em 1996)

                                                                                                                                UN Photo/Kibae Park

Mulher, como te chamas? - Não sei.
Quando nasceste, tua origem? - Não sei.
Por que cavaste um buraco na terra? - Não sei.
Há quanto tempo estás aqui escondida? - Não sei.
Por que mordeste o meu anular? - Não sei.
Sabes, não te faremos 
mal nenhum. - Não sei.
De que lado estás? - Não sei.
É tempo de guerra, tens de escolher. - Não sei.
Existe ainda a tua aldeia? - Não sei.
E estas criancas, são tuas? - Sim.

11 de mai. de 2013

Vozes de Marrakech de Enrique Vila-Matas

david graham

Tinha ouvido falar das vozes de Marrakech, mas não sabia se estas tinham realmente algo de peculiar. Talvez sejam diferentes do resto das vozes do mundo, eu me disse ao instalar-me na varanda do café de onde se divisava a praça de Xemaá-el-Fná. Deu-me de pensar que nunca se fala da cor das vozes e que talvez em Marrakech isso fosse possível. Voz terra de Siena de Petrarca, voz cor de traje de faquir hindu. Talvez em Marrakech, eu me disse, as vozes tenham cor. Não tardei em comprovar que andava certo. Aproximou-se um garçom marroquino e, ao perguntar-me o que desejava tomar, pareceu-me que sua voz, que evocava o fundo sonoro dos muezins quando dos minaretes convocam o povo à oração, era uma voz cor cal de torre de mesquita. E pedi religiosamente um chá.
Apareceu um orate de pele escura, raça negra, branca cafetã impoluta. Toda minha atenção centrou-se nele e no seu ingrávido edifício sonoro. Nunca tinha visto trejeitos tão airados e tão sobriamente compassados ao ritmo de umas vibrações acústicas, inaudíveis para mim, que se apoderavam com grande energia do ambiente e que pareciam reproduzir, no ar entrecortado pelos gestos, uma história.
Imaginei que o orate só possuía uma história e que esta falava de um tronco triste alçado como mastro. Falava dele mesmo e dos dias em que lhe dominaram as ânsias de aventura. O orate negro tinha viajado a terras longínquas e, em seu périplo, foi apropriando-se de fragmentos de histórias que dissimuladamente havia escutado. Com todos estes retalhos foi compondo o romance airado e musical de sua vida: uma história que, com ritmo sincopado e artimanhas de mímico, vendia diariamente como um sonho a um público sempre devotado e fiel, ali em Xemaá-el-Fná.
Era a história ou o resumo fictício do que tinha sido sua vida. Uma vida sintetizada em quatro gestos que clamavam ao céu e em quatro vibrações acústicas e rítmicas de voz cor fraque branco de músico de jazz. Voz de orate negro. Na verdade aquela era toda uma voz de cor.

Enrique Vila-Matas. "La fuga en camisa". In. Recuerdos inventados. Barcelona: Anagrama, 1994 [originalmente publicado em Una casa para siempre] Tradução de Conrado Falbo

9 de mai. de 2013

A estrela - Ferreira Gullar


Gatinho, meu amigo,
fazes ideia do que seja uma estrela?

Dizem que todo este nosso imenso planeta
coberto de oceanos e montanhas
é menos que um grão de poeira
se comparado a uma delas

Estrelas são explosões nucleares em cadeia
numa sucessão que dura bilhões de anos

O mesmo que a eternidade

Não obstante, Gatinho, confesso
que pouco me importa
quanto dura uma estrela

Importa-me quanto duras tu,
querido amigo,
e esses teus olhos azul-safira
com que me fitas

8 de mai. de 2013

Existirem Mães :: Mário de Andrade



Existirem mães,
Isso é um caso sério.
Afirmam que a mãe
Atrapalha tudo,
É fato, ela prende
Os erros da gente,
E era bem melhor
Não existir mãe.

Mas em todo caso
Quando a vida está
Mais dura, mais vida,
Ninguém como a mãe
Pra aguentar a gente
Escondendo a cara
Entre os joelhos dela.
-O que você tem?...
Ela bem sabe
Porém a pergunta
É pra disfarçar.
Você mente muito.
Ela faz que aceita,
E a desgraça vira
Mistério pra dois.
Não vê que uma amante
Nem outra mulher
Entende a verdade
Que a gente confessa
Por trás das mentiras!
Só mesmo uma mãe...
Só mesmo essa dona
Que a-pesar-de ter
A cara raivosa
Do filho entre os seios,
Marcando-lhe a carne,
Sentindo-lhe os cheiros,
Permanece virgem,
E o filho também...
Ôh, virgens, perdei-vos,
Pra terdes direito
A essa virgindade
Que só as mães têm!

ANDRADE, Mário de. Poesias completas. 
Belo Horizonte: Itatiaia, p.305.

Não ter vaidades é a maior de todas. Millôr Fernandes












fonte: http://www.lacma.org/art/collection

7 de mai. de 2013

A Flor-do-Luar no Rio Negro, 1988 - Margaret Mee

 Margaret Mee




Minha busca pela “flor-do-luar” (Strophocactus wittii, agora chamada Selenicereus wittii) continuou. Eu já havia colhido esta planta três vezes em viagens ao Rio Negro e seus afluentes, porém nunca com flores. Ainda em busca desse maravilhoso cactus, Sue Loram e eu encontramos um amigo no aeroporto do Rio de Janeiro. Havíamos reservado nossos bilhetes no primeiro voo para Manaus. Após quatro horas, descemos no calor da Amazônia. Manaus havia se expandido nos últimos cinco anos, após minha última visita, de modo que a periferia da cidade estava irreconhecível e, no lugar das lindas florestas ao redor, a região havia sido limpa e encontrava-se agora coberta de casas e fábricas.
No dia seguinte, encontramo-nos com Gilberto Castro e na metade da manhã já seguíamos lentamente pelo Rio Negro, tendo como piloto Paulo, que é o navegador do Gilberto. Vi que as florestas haviam desaparecido. Grandes áreas tinham sido devastadas pelos fazendeiros e queimadores de carvão. Ao amanhecer, encontramo-nos no paraná das Anavilhanas, onde na margem esquerda florestas magníficas se alinhavam pelo rio. As enormes árvores estavam carregadas de filodendros. As bromélias penduravam-se nos galhos e, ocasionalmente, uma orquídea brilhava em contraste com a cortina verde. Dez horas após a partida de Manaus o motor foi desligado, e em perfeito silêncio o barco manteve-se deslizando até a margem em frente à choupana onde permanecemos em 1982. Muito pouco havia mudado, graças aos cuidados do Gilberto, e muitas outras árvores estavam crescendo no local.

A busca

Pela porta, olhamos ao longo de um largo canal alinhado de floresta intacta, com o paraná e o igapó ao fundo. Como já nos aproximávamos da tempestade de chuvas, o nível do rio estava bastante elevado, atingindo a colina gramada e, provavelmente, nos próximos dois meses subiria pelo menos mais dois metros.
Estávamos entusiasmados e otimistas com os planejamentos da busca pelo Strophocactus. Algumas semanas antes de deixarmos o rio, Paulo recebeu instruções para explorar os arredores em suas expedições de pesca em busca do cactus. Após uns quatro ou cinco quilômetros subindo pelo rio paraná, entramos no igapó. Ilhas de mato flutuavam nas águas paradas de onde surgiam troncos cinzas e envelhecidos como esqueletos, com a água atingindo seus ramos.
Fiquei desapontada quando Paulo nos mostrou sua primeira descoberta, que era um Phyllocactus cujas folhas vermelhas foram confundidas com as do Strophocactus. Sem se deixar intimidar, ele pilotou o barco até a base da árvore robusta de arapi, onde em uma forquilha encontramos as folhas escarlate do Strophocactus wittii pressionadas de encontro ao tronco, como se fossem decalques. A planta, no entanto, estava sem flor, talvez por estar em uma área externa do igapó, desprotegida da constante luz do sol.
Não estávamos longe do igarapé onde a planta foi encontrada em 1982. No entanto, a vegetação havia se tornado densa e a planta desapareceu. Continuamos nossa busca em outro igapó. Nessa região, os esqueletos de árvores permaneciam no meio do rio, com uma barreira de árvores menores e arbustos, parcialmente submersos, ao fundo protegendo a floresta. As árvores altas estavam profundamente imersas na água como colunas de um templo parcialmente afundado. As copas, impenetráveis, balançando-se logo acima do leito do rio, filtravam até o sol do meio-dia.
Entramos no igapó utilizando a canoa menor, que se inclinava sem estabilidade à medida que forçávamos nosso caminho pelos arbustos espinhosos e ásperos, para depois deslizarmos suavemente por entre as árvores. Para meu entusiasmo, de uma grande árvore pendiam cordões de folhas esmaecidas do cactus, com três enormes botões de flor. A planta estava solta, um pouco acima da água, presa por uma trepadeira. Deve ter caído e o próximo vento provavelmente a sopraria rio abaixo. Por este motivo, decidi levá-la para plantá-la em um igapó próximo de casa, onde eu poderia observar o seu desenvolvimento. Mais alto em uma árvore, entre as inúmeras folhas, havia outros botões de flores do cactus, que sem dúvida produziria sementes para germinar no igapó.
  1. Mais acima, em uma região aberta no igapó, um grupo de folhas coloridas de cactus brilhava em uma grande árvore. Como estava escurecendo, resolvi retornar no outro dia. Na tarde seguinte, observei que havia muitas epífitas nas árvores, incluindo uma gerneriad que encobria parcialmente o cactus. Fiz desenhos coloridos até o anoitecer, tendo a certeza de que os botões de flor se abririam em breve.
Ao permanecer imóvel, com o escuro contorno da floresta ao meu redor, me senti enfeitiçada. Neste momento, a primeira pétala começou a se mover, e outra após outra, enquanto a flor rompia para a vida. Abria-se muito rapidamente. Continuamos assistindo, com a fraca iluminação de uma tocha e com a luz da Lua cheia que subia pela orla escurecida da floresta. Nos primeiros estágios, a flor exalou um perfume extraordinariamente doce e ficamos todos fascinados com sua beleza e delicadeza. Para nossa surpresa, ela ficou enorme e totalmente aberta em uma hora.
Enquanto desenhava, desejei que chegasse um polinizador, que os especialistas acreditam ser uma mariposa ou talvez um morcego. Nossa vigília durou toda a noite e cheguei à conclusão de que nossa intromissão acabou por importunar o equilíbrio desenvolvido durante dezenas de milhões de anos. Esse distúrbio, no entanto, era muito pequeno em comparação com o que havia visto nos cursos do Amazonas, pois a floresta havia mudado consideravelmente e as plantas adoráveis que eu pintava ao longo do Rio Negro haviam desaparecido. Lembrava-me do entusiasmo de minha primeira viagem à região, entre as enormes árvores das margens. A mudança havia sido desastrosa e a destruição com a queimada da floresta provocam incertezas para o futuro de nosso planeta.
A “Flor-do-Luar” fechou-se antes do amanhecer. Pássaros deixavam seus ninhos e sobrevoavam as ilhas. Um tucano apareceu úmido de orvalho sobre a copa de uma árvore. Uma elegante garça pescava. É o amanhecer de um outro dia.

fonte: Mee, Margaret. Flores da floresta amazonica - a arte botãnica de Margaret Mee. Escrituras, 2011

6 de mai. de 2013

Arte poética II de Sophia de Mello Breyner Andresen


A poesia não me pede propriamente uma especialização pois a sua arte é uma arte do ser.
Também não é tempo ou trabalho o que a poesia me pede.
Nem me pede uma ciência nem uma estética nem uma teoria.
Pede-me antes a inteireza do meu ser, uma consciência mais funda do que a minha inteligência, uma fidelidade mais pura do que aquela que eu possa controlar.
Pede-me uma intransigência sem lacuna.
Pede-me que arranque da minha vida que se quebra, gasta, corrompe e dilui uma túnica sem costura.
Pede-me que viva atenta como uma antena, pede-me que viva sempre, que nunca me esqueça.
Pede-me uma obstinação sem tréguas, densa e compacta.

5 de mai. de 2013

Albert Anker (Berna, Suiça 1831 -1910)























Trem andando de Bartolomeu Campos de Queirós

Delvaux, Paul - Soledad (1955)

“Durante quatro estações, em todas as manhãs, o trem deslizava em frente de nossa casa. Nascia na cidade de um avô, que escrevia nas paredes, e morria na cidade de outro avô, com seu olho de vidro. Sempre suspeitei o nascer como entrar num trem andando. Só que não sabia de onde vinha nem para onde ia. E, no meu vagão, não escolhi companheiros para a viagem. Eram todos estranhos, severos, amargos, impostos. Também entrei sem comprar o bilhete de viagem. Minha bagagem, pequena, cabia debaixo do banco – da segunda classe – sem incomodar. Contrabandeava poucos pertences: uma grande dor que doía o corpo inteiro e a vontade de encontrar um remédio capaz de remediar o incômodo. Até hoje o mundo ainda não atracou. Vou sem escolher o destino. O trem estancava na minha cidade, trocava de carga e reabastecia-se. O mundo só nos permite uma baldeação definitiva.”

Vermelho amargo. Cosac Naify: 2011. p. 37-38

4 de mai. de 2013

Perplexidades - Ferreira Gullar


a parte mais efêmera 
de mim
é esta consciência de que existo

e todo o existir consiste nisto

é estranho!
e mais estranho
ainda
me é sabê-lo
e saber
que esta consciência dura menos
que um fio de meu cabelo

e mais estranho ainda
que sabê-lo
é que 
enquanto dura me é dado
o infinito universo constelado
de quatrilhões e quatrilhões de estrelas
sendo que umas poucas delas
posso vê-las
fulgindo no presente do passado

Em alguma parte alguma/Ferreira Gullar; 2ª ed.- Rio de Janeiro: José Olympio, 2010

3 de mai. de 2013

Retrato do artista quando jovem (trecho) - James Joyce

Pedro Figari - La vida
Onde estava, agora, a sua infância? Onde estava a alma que recuara suspensa do seu destino, para avaliar sozinha a vergonha de suas feridas e para em sua morada de sordidez e de subterfúgio governar por entre velhas mortalhas e grinaldas que murchavam ao menor contato? Ou onde estava ele?
Ele estava longe de tudo e de todos, sozinho. Ele estava desligado de tudo, feliz, rente ao coração selvagem da vida. Estava sozinho, e era jovem, cheio de vontade, e tinha um coração selvagem; estava sozinho no meio dum ermo de ar bravio, entre águas salobras, entre a colheita marítima de conchas, entre emaranhados e redemoinhos, entre claridades embaçadas de cinzento, entre figuras de crianças, e de raparigas vestidas de alegria, e de luz, entre vozes infantis e joviais que enchiam o ar.