23 de jun. de 2017

O peregrino e seu rei:: Milton Hatoum



O Peregrino e seu Rei

We must love one another or die. (W.H. Auden)
                               
Quase um ano sem encontrar meu amigo Peregrino, e eis que o vejo na tarde fria, o corpo coberto por uma manta de lã. Ao lado dele, o mesmo cachorro altivo: “o Rei, grande tradutor e leitor canino”, como me disse certa vez o Peregrino, sem qualquer ironia no tom da voz.

Não é viciado em drogas, muito menos traficante: é apenas um dos milhares de moradores de rua desta cidade tão linda, tão humanizada.

No século passado, o Peregrino largou uma exitosa carreira de arquiteto e foi viver na rua, causando surpresa e perplexidade aos parentes e amigos, a quem não deu qualquer explicação.

Na época da faculdade, ele desenhava como um demiurgo, era craque em cálculo integral e outras disciplinas da Politécnica, que tanto amedrontavam os estudantes de arquitetura. Nesses anos de vida errante, que já são décadas, nunca desprezou os estudos: é um leitor obstinado, não perdeu o talento artístico, faz anotações meio amalucadas em cadernos e folhas soltas, e detesta ser chamado de doutor pelos amigos andarilhos.

Quando a gente se encontra numa praça ou rua de São Paulo, ofereço-lhe livros, leio trechos do diário dele, observo os desenhos: um manacá florido, namorados abraçados, a fachada de um cortiço, rostos de refugiados e expatriados haitianos e africanos no Cambuci e na Praça da República, ou rostos de brasileiros paupérrimos, caídos debaixo de um dos viadutos da Radial Leste, onde uma favela cresce a cada dia com sua noite.
Rei, o companheiro inseparável, me reconheceu na tarde fria e soltou latidos dóceis, de boas-vindas; o Peregrino desviou o olhar de um jornal e perguntou: Trouxe livros?

Peguei um volume fino na sacola: um deles é este.

Ele e o Rei admiraram a capa do livrinho de Timothy Snyder. Quando o Peregrino leu em voz alta o título (Sobre a Tirania), Rei começou a latir com ânsia, até estacar num espasmo. O Peregrino esperou uns segundos e traduziu a fala do cão:

“Ele disse que a tirania é universal... A tradução mais fiel dos latidos seria: a tirania é municipal, estadual, federal e universal”.
Sábio cão, eu disse. E por falar em tradução, acho que você vai gostar deste outro presente.

Tirei da sacola um exemplar do romance “Noite dentro da noite”, de Joca Reiners Terron.

“É sobre tradução?”, perguntou o Peregrino.

O nome principal narrador do romance é o de um grande tradutor alemão, respondi. Mas o livro é sobre várias traduções: da vida, do amor, do desamor, da história familiar, não menos violenta que a história deste país alucinado... E sobretudo da memória perdida, evocada ou traduzida pela imaginação de um outro... É também uma ficção sobre a morte, que é intraduzível.

“Amanhã vou começar a leitura dessa noite dupla”, afirmou o Peregrino, com uma voz abafada.

Por que o meu amigo andarilho estava melancólico?

“Não é melancolia... É que acabei de ler uma coisa, por isso estou emocionado”.

O cão concordou e olhou com tristeza para o jornal aberto.

Era um artigo breve e antigo, ilustrado com uma fotografia colorida: um homem idoso voando numa asa-delta. No fundo da foto, uma montanha do Rio e o mar num dia ensolarado. A reportagem podia ser apenas isto: um coroa carioca voando numa asa-delta. Mas era muito mais. Falava do sentimento do homem durante o voo: um pai que perdera o filho num acidente de asa-delta. Ele quis fazer o mesmo trajeto do último voo do filho para sentir a liberdade e o prazer de voar, e assim interiorizar o sentimento que o filho havia experimentado em tantas viagens, até a última, fatal.      

“Isso nada mais é que amor, puro amor”, disse o Peregrino, pegando os dois livros e se despedindo de mim, como se a vasta e caótica cidade o esperasse.

Cobriu com um pedaço de pano o corpo do pequeno Rei, e acrescentou.
“O amor do pai também é universal”.
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Crônica de Milton Hatoum publicada no Caderno 2 (Estadão) e no Segundo Caderno (O Globo). 16/Junho/2017

O leopardo ::

Muhammad Mahdi Karim
O Kilimanjaro é aquela montanha na África onde, segundo Hemingway contou, um dia encontraram a carcaça congelada de um leopardo perto do cume, e nunca ficaram sabendo o que o leopardo fazia por lá.

O leopardo de Hemingway já foi considerado símbolo de muitas coisas: espírito de aventura, a busca solitária do inalcançável, a imprevisibilidade do comportamento humano, a pretensão ou a simples inquietação que move bichos e artistas.

Num mundo ameaçado de afogamento pelo degelo causado pelo aquecimento global, o leopardo de Hemingway também pode simbolizar o instinto suicida que nos trouxe a este ponto.

O próprio Kilimanjaro é um termômetro assustador do efeito estufa, cujas consequências e combate se discutem hoje. O pico do monte já perdeu mais de 80% da sua cobertura de neve nos últimos 90 anos, e o cálculo é que a neve desaparecerá por completo nos próximos 20.

Os Estados Unidos têm 4% da população do planeta e emitem um quarto do dióxido de carbono e outros venenos que ameaçam todo o mundo. Mas não são vilões isolados, nem se deve estranhar muito sua aparente opção pelo suicídio declarada pelo Trump.

Escrevendo num “London Review of Books” sobre o fim próximo da civilização do hidrocarbono, Murray Sayle fez um paralelo entre Japão e Europa, onde já havia comunidades nacionais antes da Revolução Industrial, e o Novo Mundo, onde as identidades nacionais se formaram graças ao combustível fóssil, e não seriam países se não fosse pelo trem, o barco a vapor e depois o automóvel.

Nestes países, o ambientalismo contradiz toda uma cultura empreendedora, que definiu o caráter nacional. O que se está pedindo deles é nada menos do que uma condenação da própria história e uma revolução do pensamento.

O fato é que um dia um extraterreno descobrirá a carcaça calcinada — ou congelada, já que depois do diluvio virá outra era glacial — de um homem da idade do hidrocarbono, e a considerará tão inexplicável quanto a do leopardo de Hemingway.


Plantas Suculentas






fonte: http://suculentasminhas.blogspot.com.br/2012/07/propagulos-foliares.html

22 de jun. de 2017

DESAMPARO :: Cecília Meireles

DIGO-TE que podes ficar de olhos fechados sôbre o meu peito,
porque uma ondulação maternal de onda eterna
te levará na exata direção do mundo humano.

Mas no equilíbrio do silêncio,
no tempo sem côr e sem número,
pergunta a mim mesmo o lábio do meu pensamento:

quem é que me leva a mim,
que peito nutre a duração desta presença,
que música embala a minha música que te embala,
a que oceano se prende e desprende
a onda da minha vida, em que estás como rosa ou barco...?

20 de jun. de 2017

MACHADO, Antonio

CLARENCE WHITE
Nunca persegui a glória
nem conservar na memória
dos homens minha canção;
eu amo os mundos sutis,
ingrávidos e gentis
como bolhas de sabão.
Gosto de vê-los pintar-se
de ouro e de carmim, voar
no céu azul, tremular
subitamente e quebrar-se.

..........

Nunca persegui la gloria
ni de ar en la memoria
de los hombres mi canción;
yo amo los mundos sutiles,
ingrávidos y gentiles
como pompas de jabón.
Me gusta verlos pintarse
de sol y grana, volar
bajo el ciclo azul, temblar
subitamente y quebrarse.




 Proverbios y cantares.  Provérbios e cantares.   Tradução:  Ronald Polito.  Belo Horizonte: 2009.

19 de jun. de 2017

Reinvenção :: Cecília Meireles

A vida só é possível
reinventada.

Anda o sol pelas campinas
e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas…
Ah! tudo bolhas
que vem de fundas piscinas
de ilusionismo… — mais nada.

Mas a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.

Vem a lua, vem, retira
as algemas dos meus braços.
Projeto-me por espaços
cheios da tua Figura.
Tudo mentira! Mentira
da lua, na noite escura.

Não te encontro, não te alcanço…
Só — no tempo equilibrada,
desprendo-me do balanço
que além do tempo me leva.
Só — na treva,
fico: recebida e dada.

Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.


Poema :: Frank O’Hara (Baltimore em 1926 -25 de julho de 1966 )

Van Gogh 
Se eu soubesse exatamente porque a castanheira
parece estar a ponto de flamejar ou morrer, suas pirâmides

tremulam, eu te contaria? Talvez não.
Nós devemos manter o interesse por selos estrangeiros,

horários de trem, placares de baseball, e
psicologia anormal, ou tudo se perde. Eu

poderia te contar além do que eu e você
suportaríamos, e eu suponho que você responderia

com gentileza. É uma coisa terrível se sentir como
quem faz um piquenique e esqueceu o almoço.

E todas as coisas se resolvem sozinhas,
elas se entendiam sem nós antes. Mas deus,

fez tudo então! E agora é a nossa árvore
que está em flamas, ainda florescendo, como se

não tivesse nada melhor para fazer! Não temos nós
um dever com ela, como se ela fosse uma mina de ouro

nós sucumbimos a íngremes montanhas desertas,
ou a uma criança suja, ou a um abscesso fatal?

18 de jun. de 2017

Eu tenho uma coleção de esquecimentos :: Arnaldo Antunes


eu tenho uma coleção de esquecimentos
e apenas duas mãos pra ver o mundo
meu dia passa inteiro num segundo
mas nada abafa a voz dos pensamentos
nem frontal e nem melatonina
eu tenho as saudades de um soldado
do que haveria de ser o meu passado
de tudo que escapou da minha sina
desculpas, culpas, lapsos de sinapses
impregnam minha corrente sanguínea
e sigo apassivando a carne ígnea
e aplainando os vértices dos ápices
eu sou o super-homem submisso
às rotas da rotina e ao tempo escasso
enquanto esqueço do próximo passo
anoto um outro novo compromisso
queria estar a sós comigo mesmo
e ter a eternidade toda em torno
desfalecer no fogo desse forno
até me desfazer como um torresmo

fonte:  Agora aqui ninguém precisa de si. Companhia das Letras, 2015 

13 de jun. de 2017

Escadas :: Mario Quintana

Escadas de caracol

Sempre

São misteriosas: conturbam.

Quando as descem, a gente

Se desparafusa.

Quando a gente as sobe

Se parafusa

- o peito

estreito –

o teto descendo

Descendo descendo como nas histórias de imortal horror!


Mas de que jeito,

Mas como pode ser,

Morrer cair rolar por uma escada de parafuso?

Além disso não têm, pelo que dizem, nenhuma acústica...

Oh! não há como as escadarias daqueles antigos edifícios públicos

Para ser assassinado...

Porém não fiques tão eufórico,

- nem tudo são rosas:

Há,

no sonho das velhas casas de cômodos onde moras,

Passos que vêm subindo degrau por degrau em direção ao teu quarto

E “sabes” que é um fantasma chamejante e fosfóreo

- o corpo todo feito de inconsumíveis labaredas verdes!


O melhor

Mesmo

É fechar os olhos

E pensar numa outra coisa...

Pensa, pensa

- o quanto antes!

Naquelas pobres escadas de madeira das casas pobres

- escurinho dos teus primeiros aconchegos...

Pensa em cascatas de risos

Escada abaixo

De crianças deixando a escola...

Pensa na escada do poema

Que tu

comigo

vens descendo

agora...

(Hoje em dia todas as escadas são para descer)

Mas não! este poema não é

Nenhum

Abrigo

Antiaéreo...

Ah, tu querias que eu te embalasse?!

Eu estava, apenas, explorando uns abismos...


Apontamentos de História Sobrenatural, 2005.

10 de jun. de 2017

AUTOMÓVILES:: CELIA FONTÁN


Guardo la fotografía
en que mi abuela
conduce un Buick sedan
y lleva a su madre en el asiento trasero.
A menudo pienso
que quise hacer lo mismo:
conducir un automóvil
y llevar a mi madre a donde ella quisiera,
quizás hacia la escena lejana en que la abuela
condujo el viejo Buick.
Mi madre
nunca tuvo automóvil ni manejó ninguno,
mi abuela fue algo serio:
condujo como en sueños,
lo que no existió nunca.