30 de out. de 2018

Carlos Drummond de Andrade


 Em 1965, Nara Leão (1942-1989) concede uma entrevista em que, sem papas na língua, diz aos militares que entreguem de volta o poder aos civis. As manchetes de jornais alardearam os rugidos da senhorita Leão: “Nara é de opinião: esse Exército não vale nada”“Nara pode ser presa mas não muda de opinião”“Nara: sou contra militar no poder”“Entrevista abalou os alicerces do Exército Nacional”“Considero os exércitos, no plural, desnecessários e prepotentes”“Meu violão é a única arma que tenho; meu campo de guerra é o palco.” (confira: Dossiê Drummond, de Geneton Moraes Neto, Ed. Globo). Sob ameaça de ir em cana, Nara Leão foi defendida pelo poeta Carlos Drummond de Andrade, através de um poema saboroso, publicado na imprensa e endereçado ao Marechal Castelo Branco, que A Casa De Vidro aqui reproduz:
  APELO
(excerto)
“Meu honrado marechal
dirigente da nação,
venho fazer-lhe um apelo:
não prenda Nara Leão (…)
A menina disse coisas
de causar estremeção?
Pois a voz de uma garota
abala a Revolução?
Narinha quis separar
o civil do capitão?
Em nossa ordem social
lançar desagregação?
Será que ela tem na fala,
mais do que charme, canhão?
Ou pensam que, pelo nome,
em vez de Nara, é leão? (…)
Que disse a mocinha, enfim,
De inspirado pelo Cão?
Que é pela paz e amor
e contra a destruição?
Deu seu palpite em política,
favorável à eleição
de um bom paisano – isso é crime,
acaso, de alta traição?
E depois, se não há preso
político, na ocasião,
por que fazer da menina
uma única exceção? (…)
Nara é pássaro, sabia?
E nem adianta prisão
para a voz que, pelos ares,
espalha sua canção.
Meu ilustre marechal
dirigente da nação,
não deixe, nem de brinquedo,
que prendam Nara Leão.”
Carlos Drummond de Andrade

15 de out. de 2018

Toda Palavra :: VIVIANE MOSÉ

Procuro uma palavra que me salve 
Pode ser uma palavra verbo 
Uma palavra vespa, uma palavra casta. 
Pode ser uma palavra dura. Sem carinho. 
Ou palavra muda, 
molhada de suor no esforço da terra não lavrada. 
Não ligo se ela vem suja, mal lavada. 
Procuro uma coisa qualquer que saia soada do nada. 
Eu imploro pelos verbos que tanto humilhei 
e reconsidero minha posição em relação aos adjetivos. 
Penso em quanta fadiga me dava 
o excesso de frases desalinhadas em meu ouvido. 
Hoje imploro uma fala escrita, 
não pode ser cantada. 
Preciso de uma palavra letra 
grifada grafia no papel. 
Uma palavra como um porto 
um mar um prado 
um campo minado um contorno 
carrossel cavalo pente quebrado véu 
mariscos muralhas manivelas navalhas. 
Eu preciso do escarcéu soletrado 
Preciso daquilo que havia negado 
E mesmo tendo medo de algumas palavras 
preciso da palavra medo como preciso da palavra morte 
que é uma palavra triste. 
Toda palavra deve ser anunciada e ouvida. 
Nunca mais o desprezo por coisas mal ditas. 
Toda palavra é bem dita e bem vinda. 





13 de out. de 2018

Meditação à beira de um poema



Podei a roseira no momento certo
e viajei muitos dias,
aprendendo de vez
que se deve esperar biblicamente
pela hora das coisas.
Quando abri a janela, vi-a,
como nunca a vira,
constelada,
os botões,
alguns já com o rosa-pálido
espiando entre as sépalas,
jóias vivas em pencas.
Minha dor nas costas,
meu desaponto com o limite do tempo,
o grande esforço para que me entendam
pulverizaram-se
diante do recorrente milagre.
Adélia Prado

1 de out. de 2018

A UM AUSENTE :: Carlos Drummond de Andrade

Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.

Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu, enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?

Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.

Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste.