7 de dez. de 2018

Antes do encontro :: Marilia Garcia

procurar uma escada de madeira que dá para o abismo
é algo que só se pode dizer emeuskera
numa cidade cortada por um rio que fique
no meio dos dois (quando um
precisa ir embora para
sempre.)

mas um dia chega
com a pergunta:
                        – o que vem à sua cabeça
quando digo a palavra
amor?

um dia desce no meio do dia
e vê.                e um dia vê a peça lilás
sobre a quina da mesa quando volta:
ele diz saltarsaltar para fora.
e atravessa na esquina procurando a escada.
depois diz que quer saltar para fora dessa
canção.
            mas um dia chega com
a pergunta:
                        – o que vem à sua cabeça quando
digo a palavra amor?            e ela responde
que amor em japonês se diz /ai/.

de repente
um branco as linhas se tornam cada vez mais
quebradiças                um banco parado no meio da cena
– quadrado iluminado – e a frase mais longa que ele me disse
nos últimos seis meses.

o que significa um cachecol vermelho
pinicando sozinho?
uma abelha, pensa, mas o cachecol pinicando
sozinho voando uma abelha talvez um inseto
estridente incidente para ouvir quando ele
chegar e vir a garota de cachecol
vermelho       
mas agora apenas a estática tremendo e você a
leva de volta até o barco:
– a estática, pergunta. você lembra?
fica parada na chuva com seu  impermeável vermelho
esperando acontecer

[aqui o telefone
vibra e um parêntese
para dizer que está em berlim e é longe
está em berlim e é frio
está berlim e é quase
ao ouvir a sua voz parece de
verdade mas então ele levanta e diz algo
sobre o fim ou sobre o sim
e toca na tela uma imagem do filme]

O Cão Sem Plumas :: João Cabral de Melo Neto

A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada.

O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.

Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.

Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.

Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos povos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.

Aquele rio
jamais se abre aos peixes,
ao brilho,
à inquietação de faca
que há nos peixes.
Jamais se abre em peixes.

28 de nov. de 2018

Ar de família :: Armando FREITAS FILHO


Só sei ser íntimo ou não sei ser.
O que escrevo me ameaça de tão perto.
Amassa mãe, pai, filhos, mulheres
os de sangue símil, os de romance
os de tinta de impressão, de árvore
venosa de folhas variáveis no vento
das estações, no ferido almofariz
com o mesmo pilão de pedra
sem lavar, e entre uma socada e outra
o silêncio do punho fechado.


Dever. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

22 de nov. de 2018

Repenso o mundo :: W i s ł awa S z y m b o r s k a

Repenso o mundo, segunda edição,
segunda edição corrigida,
aos idiotas o riso,
aos tristes o pranto,
aos carecas o pente,
aos cães botas.

Eis um capítulo:
A Fala dos Bichos e das Plantas,
com um glossário próprio
para cada espécie.
Mesmo um simples bom-dia
trocado com um peixe,
a ti, ao peixe, a todos
na vida fortalece.

Essa há muito pressentida,
de súbito revelada,
improvisação da mata.
Essa épica das corujas!
Esses aforismos do ouriço
compostos quando imaginamos
que, ora, está só adormecido!

O tempo (capítulo dois)
tem direito de se meter
em tudo, coisa boa ou má.
Porém — ele que pulveriza montanhas
remove oceanos e está
presente na órbita das estrelas,
não terá o menor poder
sobre os amantes, tão nus
tão abraçados, com o coração alvoroçado
como um pardal na mão pousado.

A velhice é uma moral
só na vida de um marginal.
Ah, então todos são jovens!
O sofrimento (capítulo três)
não insulta o corpo.
A morte
chega com o sono.

E vais sonhar
que nem é preciso respirar,
que o silêncio sem ar
não é uma música má,
pequeno como uma fagulha,
a um toque te apagarás.

Morrer, só assim. Dor mais dolorosa
tiveste segurando nas mãos uma rosa
e terror maior sentiste ao som
de uma pétala caindo no chão.

O mundo, só assim. Só assim
viver. E morrer só esse tanto.
E todo o resto — é como Bach
tocado por um instante
num serrote

w i s ł awa s z y m b o r s k a
Poemas
Seleção, tradução e prefácio
Regina Przybycien
Companhia das Letras, 2011

Escolha o seu sonho :: Cecília Meireles




Devíamos poder preparar os nossos sonhos como os artistas, as suas composições. Com a matéria sutil da noite e da nossa alma, devíamos poder construir essas pequenas obras-primas incomunicáveis, que, ainda menos que a rosa, duram apenas o instante em que vão sendo sonhadas, e logo se apagam sem outro vestígio que a nossa memória.

Como quem resolve uma viagem, devíamos poder escolher essas explicações sem veículos nem companhia – por mares, grutas, neves, montanhas e até pelos astros, onde moram desde sempre heróis e deuses de todas as mitologias, e os fabulosos animais do Zodíaco.

Devíamos, à vontade, passear pelas margens do Paraíba, lá onde suas espumas crespas correm com o luar por entre as pedras, ao mesmo tempo cantando e chorando. – Ou habitar uma tarde prateada de Florença, e ir sorrindo para cada estátua dos palácios e das ruas, como quem saúda muitas famílias de mármore… – Ou contemplar nos Açores hortênsias da altura de uma casa, lagos, de duas cores e cestos de vime nascendo entre fontes, com águas frias de um lado e, do outro, quentes… – Ou chegar a Ouro Preto e continuar a ouvir aquela menina que estuda piano há duzentos anos, hesitante e invisível – enquanto o cavalo branco escolhe, de olhos baixos, o trevo de quatro folhas que vai comer.

Quantos lugares, meu Deus, para essas excursões! Lugares recordados ou apenas imaginados. Campos orientais atravessados por nuvens de pavões. Ruas amarelas de pó, amarelas de sol, onde os camelos de perfil de gôndola estacionam, com seus carros. Avenidas cor-de-rosa, por onde cavalinhos emplumados, de rosa na testa e colar ao pescoço, conduzem leves e elegantes coches policromos …

… E lugares inventados, feitos ao nosso gosto; jardins no meio do usar; pianos brancos que tocam sozinhos; livros que se desarmam, transformados em música. […]

Devíamos poder sonhar com as criaturas que nunca vimos e gostaríamos de ter visto: Alexandre, o Grande; São João Batista; o Rei Davi a cantar; o Príncipe Gautama…

E sonhar com os que amamos e conhecemos, e estão perto ou longe, vivos ou mortos… Sonhar com eles no seu melhor momento, quando foram mais merecedores de amor imortal…

Ah!… – (que gostaria você de sonhar esta noite?)

Crônica extraída do Livro “Escolha o seu sonho” de Cecília Meireles. 4ª ed., Rio de Janeiro: Global Editora, 2016
.

14 de nov. de 2018

Etiópia:: Francesca Angiolillo



Etiopía era a estação
de metrô da minha casa
quando eu me mudei daqui –
você logo
se lembrou
da Etiópia.
A estação de metrô tinha
uma cabeça de leão
como emblema
a sua Etiópia tinha
um filhote de chacal e
um imperador
segurando o filhote de animal
uma pedra no anel
no dedo do imperador
sobre a cabeça do filhote
– nela brilhava o sol.
O fascismo que você
deplorou do alto
de seus oito anos
na fila do leite
porque leite não havia
ergueu cidades
na Etiópia.
(No ano em que você nasceu
o imperador foi eleito
homem do ano
da Time Magazine;
depois disso
bem depois um tanto depois de
nascida eu
outras crianças passaram fome
sem direito a fila
no vale do rio Omo.)
Nunca soube das cidades
que você não ergueu
nas terras de Afar
onde Lucy nossa mãe
até hoje está
mas sei da pedra do anel
no dedo de
Haile
Selassie
como se eu estivesse lá
como se eu fosse você.
Sua Etiópia hoje é
uma fotografia
– nela você aparece
cercado de gente
negra pintada –
guardada
numa caixa
de papelão.


Mirindiba:: Ana Dinni




Eu queria te mostrar a mirindiba em flor sob a lua minguante,
mas como eu não conheço a arte dos fotógrafos, eu te conto:
ela está aqui, acima dos meus olhos, cheia de flor branca na noite escura.