11 de abr. de 2019

Autonomia ::Wisława Szymborska

Karl Bryullov

Diante do perigo, a holotúria se divide em duas:
deixando uma sua metade ser devorada pelo mundo,
salvando-se com a outra metade.

Ela se bifurca subitamente em naufrágio e salvação,
em resgate e promessa, no que foi e no que será.

No centro do seu corpo irrompe um precipício
de duas bordas que se tornam estranhas uma à outra.

Sobre uma das bordas, a morte, sobre outra, a vida.
Aqui o desespero, ali a coragem.

Se há balança, nenhum prato pesa mais que o outro.
Se há justiça, ei-la aqui.

Morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida.
Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou.

Nós também sabemos nos dividir, é verdade.
Mas apenas em corpo e sussurros partidos.
Em corpo e poesia.

Aqui a garganta, do outro lado, o riso,
leve, logo abafado.

Aqui o coração pesado, ali o Não Morrer Demais,
três pequenas palavras que são as três plumas de um vôo.

O abismo não nos divide.
O abismo nos cerca.

Completas:: Manuel António Pina

A meu favor tenho o teu olhar testemunhando por mim perante juízes terríveis: a morte, os amigos, os inimigos. 

E aqueles que me assaltam 
à noite na solidão do quarto 
refugiam-se em fundos sítios dentro de mim 
quando de manhã o teu olhar ilumina o quarto. 

Protege-me com ele, com o teu olhar, 
dos demónios da noite e das aflições do dia, 
fala em voz alta, não deixes que adormeça, 
afasta de mim o pecado da infelicidade. 

in: Algo Parecido Com Isto, da Mesma Substância.


Wassily Kandinsky, (1866, Moscou, Russia—1944, Neuilly-sur-Seine, França)







Por delicadeza :: Sophia de Mello Breyner Andresen

Uemura Shōen

Bailarina fui
Mas nunca dançei
Em frente das grades
Só três passos dei

Tão breve o começo
Tão cedo negado
Dançei no avesso
Do tempo bailado

Dançarina fui
Mas nunca bailei
Deixei-me ficar
Na prisão do rei

Onde o mar aberto
E o tempo lavado?
Perdi-me tão perto
Do jardim buscado

Bailarina fui
Mas nunca bailei
Minha vida toda
Como cega errei

Minha vida atada
Nunca a desatei
Como Rimbaud disse
Também eu direi:

«Juventude ociosa
Por tudo iludida
Por delicadeza
Perdi minha vida»

in O Nome das Coisas, 1977

2 de abr. de 2019

Um corpo :: Ana Suy

O que fazer com um corpo?
Sobreviver!
Respirar, comer, excretar
Doer, parar de doer, voltar a doer
Parar de doer, doer
Nomear uma dor que não dói
Como prazer

O que fazer com um corpo?
Dançar!
Rodar, saltar, fazer-um com o som
Doer, esquecer que dói, lembrar de novo
Parar de doer, doer
Descobrir que o que doía antes não dói mais e chamar isso
De alegria

O que fazer com um corpo?
Amar!
Desejar, beijar, abraçar
Se perder no corpo do outro, se angustiar com a perda de si, desejar não mais amar
Doer, doer mais ainda, doer um pouco menos, doer muito menos
E descobrir que se dói menos
A dois

O que fazer com um corpo?
Escrever!
Escorrer letras pelos dedos, doar caminhos às palavras, deixar cair as pontuações
Permitir-se guiar pela dor, descobrir que a dor tem fim, querer retornar à dor para escrever
Entender que a vontade de retornar à dor já é uma dor, por si só
Descobrir que não é um corpo que escreve, mas é algo que se escreve em
Um corpo.