8 de jan. de 2024

Matrioskas :: Rubermária Sperandio

Pra não romper nas nervuras,

facilitar o entalhe,

secar sem se entortar,

é preciso escolher a madeira certa.

Depois, faz-se um buraco nela.

“Vai doer!”

Ainda dói

o miolo estripado.

No seu oco,

coloca-se a outra

feita à sua semelhança;

cópia da cópia.

Para animar mais o artesão,

cores alegres e divertidas.

Verniz contra o gelo

pra ela não desmaiar.

Assim são espalhadas pelo mundo,

em diferentes cores e fantasias.

Mães e filhas, bonecas

fazendo a festa do artífice.

E lá dentro da Matrioska,

mulheres diminuídas.

Mas tudo tem um fim.

A última será a inteira.

1 de jan. de 2024

Um sonho de Clarice Lispector


Foi um sonho tão forte que acreditei nele por minutos como uma realidade. Sonhei que aquele dia era Ano Novo. E quando abri os olhos cheguei a dizer: Feliz Ano Novo! Não entendo de sonhos.  Mas este me parece um profundo desejo de mudança de vida. Não precisa ser feliz sequer. Basta ano novo. E é tão difícil mudar. Às vezes escorre sangue.
Clarice Lispector em  A Descoberta do Mundo. pag. 91

26 de dez. de 2023

OUTRO NATAL :: Marcílio Godoi

Outro Natal e aquele mesmo dia abafado, comprido, aquele chove-não-chove lá fora e na casa esse dentro ruído de antigas mobílias e paredes se arrastando.

Lentas correntes de homens e mulheres lembram-nos dos que já se foram e que agora voltam, trazidos nesse fio de castanhas moídas entredentes e uma tristeza amiga, doce e amarga que emenda todos os natais.

Outro Natal e o calor de aromas assados no forno-fogo consolador da formidável quitanda dos livros-mãe. Água na boca de avós a nos irrigar os molares com aquele vinho barato de garrafão novo-envelhecido, um pouco seco, inevitavelmente doce, mas oficial, tão íntimo, como aquela guirlanda instável-desbotada, histórica, sempre dependurada na porta, à altura de nossos olhos úmidos e empoeirados.

Outro Natal e a azáfama infantil pelos corredores, pais na montagem de autoramas e quebra-cabeças. E as olheiras de tantos natais irmanadas por cima dos óculos a um tio muito amoroso e bêbado pelo corredor, lutando com bravura, meio que rodando em falso, contra a obsequiosa embriaguês da solidão meio silente meio desesperada que grita em cada um de nós sobretudo ao final da noite de todo Natal.

Outro Natal e essa carreira de tantos natais enfileirados surge outra vez no peito como se a festa fosse toda feita em nome da busca de uma lembrança perdida, ainda vívida, talvez mal vivida, mal redimida, talvez nunca vivida, mas ardendo, levemente ressentida, pois que o Natal insiste em ser esse registro reticente, o da memória do tempo em que havia natais.

Outro Natal e sempre nos aparece a chance remota de nos vermos mais de perto e entender que por detrás de tudo o que nos incomoda no outro está o que nele não enxergamos, o seu avesso e a história secreta que o explica direitinho, mas que nunca saberemos ao certo.

Quem tá com a coisa é que sabe, disse o velho em um desses natais. Sendo apenas o que deu conta de ser. Que imenso. E o nome disso era perdão, mas sempre e inutilmente insistimos em dizer Natal. Feliz Natal.

Outro Natal e acende mais uma vez a chama daquela saudade inconfessável, boa e ao mesmo tempo estranha como a fruta cristalizada naquele bolo de oxímoros, meio ruim, meio bom, e que vamos comer sorrindo entre rabanadas no fim-de-tarde do vinte e cinco.

Sob a sombra do tempo, esse teto, esse céu de celofane, essa palha, com uma estrela meio torta, meio cometa cruzando a manjedoura.

Outro Natal e algum detalhe dourado escondido, algum algum aroma de incenso não sei onde, um não-sei-o-que, que não havíamos notado no paninho de mesa bordado, no prato antigo, num sobrinho, como cresceu!

Outro Natal e aquele mesmo aniversariante de gesso, tão menino nos dizendo que todo Natal será sempre assim, a tentativa de ser o mesmo, repetidamente, contra a busca desesperada de ser um outro, inutilmente. 

24 de dez. de 2023

Histórias de Natal :: Marina Colasanti

Emile Bayard



Luiz descobriu a literatura numa cela forte. Tinha sido preso pela primeira vez aos 19 anos, por assalto e homicídio. Começou pela Febem, depois por outras casas de detenção. Ao todo, ficou preso por 31 anos, com mais 10 meses de lambujem. E em algum ponto, numa cela forte, encontrou-se com a literatura. Não tinha livro nenhum na mão. Mas através do encanamento da privada que ligava a cela dele a outra, um preso contou-lhe a história do livro "Os miseráveis", de Victor Hugo.

"Ele me contou por capítulos, como novela, porque não dava para falar tudo de uma vez.- disse Luiz Alberto Mendes em uma entrevista à Folha -.Quando fui ler, achei desinteressante, perto do que ele contava."

É história parecida com outra que foi contada a Affonso, meu marido. Um homem estava internado no hospital há algum tempo. Melhorava lentamente, mas melhorava, e um dia sarou. Na sala dos médicos, aquele que o tratava comentou com um colega: "Dei alta hoje ao paciente do leito tal, mas ele me pediu para deixá-lo ficar mais uns dias, para poder acabar o livro que está lendo. Achei bonito". " Deve ser alguma mutreta pra comer de graça - respondeu o outro - O paciente tal não sabe ler, é analfabeto". No dia seguinte, chegando junto ao paciente, o médico o interpelou. A resposta foi simples. Quem lia era o companheiro da cama ao lado, que contava para ele . "Eu estou lendo na leitura dele", arrematou.

E porque é Natal, recebo do meu amigo Paulo Netho uma mensagem carinhosa em que me diz do seu gosto de "colocar vento" nas palavras. Paulo é um artista, um grande contador de histórias.

A qualquer momento, alguém põe vento nas palavras e elas se vão , adquirindo nova dimensão no imaginário de quem as recolhe. 

Luiz achou "Os miseráveis" de Victor Hugo desinteressante quando, finalmente, o teve em mãos. Não surpreende. Os que leram essa obra prima literária sobre os sofrimentos de Jean Valjean, um egresso das galés, o fizeram sentados em poltronas ou largados em sofás ou camas, talvez uns poucos o tenham lido na condução. 

Muito diferente terá sido recebê-lo através do encanamento de uma privada, acocorado a seu lado para não perder uma palavra da voz do irmão "miserável", narrador oculto pelas paredes da cela forte. Só a voz e um sofrimento tão semelhante ao das personagens ligava as duas celas. 

A voz que lê em voz alta ou narra, põe outro elemento em cena. À história, às palavras, às intenções do autor da história, acrescentam-se as entonações e pausas do narrador, as suas vibrações vitais. Uma presença física transmite sua vitalidade a tantas presenças imaginadas. E o ouvinte recupera a emoção do seu primeiro aprendizado, quando, bebê ainda, a vida e seus elementos lhe eram narrados pela voz da mãe. 

Hoje é véspera de Natal. Este ano, mais de um milhão de migrantes chegou à Europa, em fuga de conflitos, fome, pobreza e falta de oportunidades em seus países. A cifra do ano passado, que já era alta, foi quadruplicada.


Que histórias contarão esses migrantes a seus filhos? Nos séculos por vir - se é que ainda teremos séculos ou milênios à frente- a "grande migração" será modificada pelo vento das palavras e pelos descaminhos da memória. O símbolo tomará o lugar da realidade. E os jovens ouvirão as vozes dos mais velhos com o mesmo maravilhamento com que se escutam histórias nunca acontecidas

20 de dez. de 2023

Reflexões de uma ovelha de presépio :: Angela Becker


mary iselin


Sou uma daquelas ovelhinhas de presépio

Invisível. 

Só uma ou outra criança me percebe no entanto, gostaria de dizer uma palavrinha

e ofereço este texto escrito com minha própria lã

dizem que este bebê deitado sobre o meu pasto é um bebê especial

acredito

todos os bebês são especiais

neste, uma estrela chegou mais perto

acredito também que em cada lugar onde nasce uma criança, desce uma estrela.

em cada uma, levantam-se novas e surpreendentes esperanças.

esta criança aqui é um milagre

todas elas são um milagre.

E por ser um milagre esta criança, deixo que durma tranquila em minha manjedoura e bafejo quentinho para espantar o frio.

a ela -e a todas as outras- ofereço o meu coração mais profundo

lá neste lugar intocado onde nada se negocia.

o meu puro deleite agora 

seria cingir com meu abraço de lã

todos os bebês do mundo.

e deste abraço-pela lei da expansão da energia, 

que nascesse de todo homem e mulher

esquecidos sentimentos de alegria e bem-estar

em todas as noites assim como nesta noite de Natal.


15 de dez. de 2023

Eu estava para fazer anos :: Lívia Garcia-Roza

 Eu estava para fazer anos, e sempre fiquei muito feliz com a data. Adoro aniversário! Não ia fazer festa, mas receberia amigos. Acho que naquele aniversário eu iria comemorar 31 anos. Já tinha passado pelo impacto que é fazer 30 anos. Nunca esqueci o filme estrelado por Maurice Ronet, "Trinta anos essa noite." Lembro até da fila pra comprar ingresso no cinema Payssandú. Invariavelmente íamos ao Lamas depois do cinema. Mas naquela noite, véspera do meu aniversário, você havia me convidado para um jantar íntimo e caprichado. Acho que fomos ao "Nino's." Depois do jantar você quis "esticar", tomar um drinque num bar. Já estava meio cansada, mas fui. E você não tinha pressa pra voltar pra casa, já era de madrugada e os drinques não acabavam. Então, quando finalmente a conta fechou, fomos embora. Mas na passagem, você quis parar numa banca para perguntar se já tinha saído o Diário de Notícias. Jornal que você assinava uma coluna. Você veio da banca com o jornal na mão e quando entrou no carro jogou ele no meu colo dizendo para que eu abrisse na página da coluna. Abri e dei de cara com a minha fotografia, abaixo dela estava escrito o meu nome e em seguida vinha um texto.

"O que se pode dizer de uma moça que faz anos hoje e que acredita em fazer anos? Que se pode dizer a uma moça que nasceu perto do Natal, e que acredita em Natal, em Papai Noel, em árvore enfeitada, em festa e em família?

Que mais dizer a uma pessoa a quem já se disse tudo? Que mais dizer a uma pessoa que transcendeu as palavras, e que descobriu o ser, o existir, puro e simples? Que dizer de uma mulher que, quando criança, descobriu em seu colégio uma escada bem larga "pra todo tipo de amiga"? Que dizer da menina que cresceu e que leva consigo essa hipotética escada, essa imensa e infinita escada, mundo afora, onde quer que esteja? Livia tem o interior de um azul lindíssimo, onde o sol de verão brilha forte e às vezes ofusca, e o vento é brisa e vendaval, e as chuvas são fortes e rápidas e limpas, prometendo inesquecíveis arco-íris?

Que dizer de uma mulher que escolheu o caminho para a frente, que escolheu afastar-se de si mesma para reencontrar-se em algum ponto da jornada, mudada ou igual, mas inteira e desassombrada? Para reencontrar-se talvez na mesma praia de Icaraí onde a menina se entregou ao sol, e descobriu que era possível sair com o sol em seu ventre, eternamente gerando-se e distribuindo-se.

Na praia de Icaraí, a menina dourada de sol, sorriso branco, tentava adivinhar a mulher que a esperava no fim do percurso. A menina de bicicleta cresceu e sem perceber, pedala junto com a mulher de carro que ainda corre, o sorriso ainda branco e livre,  a procura da menina que a espera no fim do caminho. Ou talvez o caminho não tenha fim. E o milagre já tenha acontecido. Menina e mulher se uniram no meio da procura, e o sorriso ficou mais branco, e o dourado mais profundo, e nasceu Livia.

Que se pode dizer de uma mulher que nasceu em algum ponto da alegre procura, talvez na explosão de uma onda, talvez, num alvorecer, talvez numa lufada de vento. Que dizer a moça centauro, o arco da promessa eternamente teso? Que dizer a moça que é, a um tempo, o arco e a flecha, o voo, o riso e o grito? Que gritar para essa menina alada? Que não vá? Que me espere? Que vá? Que me desista?

Que dizer a ela hoje? Que dizer a ela, que nasceu num dia igual ao de hoje, mas que na verdade está eternamente renascendo? Como abraçá-la diferente, hoje? E por que não? Por que não abraçá-la sempre diferente, hoje, e amanhã, e depois, e sempre? Por que não acreditar, igual a ela, em uma data no calendário, e deixar que essa data seja razão e explicação para esse abraço de hoje, e esse beijo de hoje?

Hoje, vamos nos sentar na escada com degraus bem grandes, pra qualquer tipo de amigo, e vamos cantar, e trocar olhares cúmplices, e dar presentes, e rir, e ver que é possível. Que alguma coisa ainda é possível. Porque o sol existe nela, e o vento e o mar e a praia e a infância.

Que dizer a Livia, hoje? É fácil. Dizer tudo que ela quer ouvir. Que o sol existe, e a praia e o mar, e a esperança. E que essa data se repita por muitos e muitos anos. Livia faz anos hoje, e o lugar-comum se transforma em verdade: parabéns pra você nesta data, querida."

5 de dez. de 2023

Bordado mexicano: Tenango e Otomi









Tenango é um estilo de bordado originado no município de Tenango de Doria, no estado mexicano de Hidalgo. É uma versão comercializada do bordado tradicional Otomi , que foi desenvolvido na década de 1960 em resposta a uma crise económica. Estima-se que mais de 1.200 artesãos pratiquem o artesanato em Tenango de Doria e no município vizinho de San Bartolo Tutotepec.

O bordado tenango autêntico e moderno é feito nos municípios de San Nicolas de Tenango de Doria e, em menor grau, na vizinha San Bartolo Tutotepec.  O design e a fabricação estão associados ao povo indígena Otomi, que se autodenomina hñuhñu . Os Otomi podem ser encontrados em vários estados da região central do México, mas o bordado é endêmico apenas nesta área.  A região é um pouco diferente de outras áreas Otomi. Encravadas em desfiladeiros íngremes, as comunidades aqui localizadas no oeste da Sierra Madre Oriental . Como estas montanhas retêm grande parte da humidade proveniente do Golfo do México, o clima aqui é significativamente mais húmido, com mais vegetação do que outras áreas de Otomi, o que afectou o desenvolvimento do padrão de bordado. Também isolou as pessoas desta área, permitindo-lhes manter muito mais das antigas tradições e visão de mundo. Em seu livro Los Tenangos: mitos y ritos bordados: arte têxtil hidalguense , a pesquisadora Carmen Lorenzo caracteriza os tenangos como uma espécie de códice moderno, dando testemunho sobre o cotidiano da zona rural Otomi desta região.  A visão de mundo destas peças é tradicional, pois grande parte da antiga ideologia destas comunidades permanece intacta. Muitos aqui ainda falam Otomi, com uma parte falando apenas esta língua. Embora haja contato com o mundo exterior por meio do artesanato e da migração para fora, isso afetou o desenvolvimento do artesanato. 


Fonte: Wikipédia