29 de jul. de 2024

DAS VÁRIAS FORMAS DE ORAÇÃO:: Marcílio Godoi

 Chega um dia em que deixamos de crer. E aquele modo antes fervoroso de existir se esvai, pouco a pouco. Sei lá, bate um vento e já não chegamos ao final das orações iniciadas, as preces perdem o tônus do clamor de antes, os anjos vão lixando as unhas e, a um canto, desconfiam. Estamos, distraídos ou preguiçosos, assim, desprovidos de amém.

Mas não é que estejamos vazios. A coisa não vai mal, até ao contrário. O divino maravilhoso vai se espraiando de outros modos, delicadezas vão sendo descobertas no real, naquele, o famoso Deus das pequenas coisas, talvez seja isso. Ou quem sabe seja só cansaço mesmo, o que é uma coisa justa. Cansaço é cansaço, não pede explicação.

Ao menos comigo, em verdade, fui trocando os grandes cerimoniais sagrados por pequenos ritos diários, bobos até, gestos que passei a devotar sentido litúrgico, embora pagão. Coisas como coar um café, aguar uma planta, ler um poema bem agnóstica e solenemente, coisas que encerram no gesto o seu sentido puro, como se estivéssemos louvando uma lagartixa no teto, um passarinho que nos visitou no basculante.

Desobrigadas, as coisas perdem o peso. E a anestesia que tomou conta de nós arrefece e a gente reconhece a beleza de sua simplicidade.

Percebi com o tempo que, se somos livres de verdade, um silêncio reflexivo vai aos poucos se apoderando de nós, e mansamente nos convida, como gays do armário, a sair do oratório. E aí, curiosos e sem uma reza só, desautomatizados, abrimos livros de várias outras religiões, não para segui-las, mas para ampliar nossas formas de encantamento.

Nessa hora, geralmente num fim de tarde, sem nos darmos conta, no vão que passa ligeiro entre duas possíveis verdades muito sinceras, vislumbramos, presentificamos a magia, de se estar sendo, aqui e agora, apenas isso, o que somos

Nesse instante cai a grande ficha das maravilhosidades, e vem a sincera percepção de que estamos mesmo nos aprontando para uma festa, ou para um encontro muito especial e íntimo: a vida. 

Com quem nos encontraremos depois? Não faço a menor ideia e duvido sinceramente que alguém tenha essa resposta, na qual podemos incluir desde o Grande Vazio dos Céticos até Muhathef Ghama, o imponente Deus que inventei agora mesmo, batucando a esmo, no meu celular. Mas já há algum tempo sinto em mim de saber sinceramente que nada disso me importa mais.

O que posso garantir é que tudo já está se dando, alô!, aqui, vejam!, no plano das sutilezas, esse mistério que, talvez, por teimosos ou reticentes, alguns de nós se recusam a chamar de Deus. Deus? que Deus?

Na impossibilidade de defini-Lo, só digo que estamos o tempo todo entoando hinos de louvor a Ele. Naqueles pequenos gestos diários a que me referi, lavar as mãos demoradamente, fazer um pão, limpar um aposento com capricho, sorrir para o movimento das formigas ou pendurar as roupas no varal, como sementes na terra à espera do grande sol, essa entidade, esse milagre, tão evidente, por exemplo.

11 de jul. de 2024

Yutaka Murakami :: aquarela

 











Diáspora:: Marcílio Godoi



Os irmãos eram tão próximos

todos vindos do oco de goiáiz, como diziam

e juntos pareciam o mesmo e único filho

em nove diferentes

corpos.


Praticávamos a coesão por virtude

por medo e falta de opção também.

A casa estava repleta de nós, bichinhos

atracados uns nos outros

feito cria de rato e gataria.


Com o tempo, ao tempo

fomos deixando de ser só aquele um

para sermos indivíduos outros

tateando o próprio modo

de se estar no mundo

em outros núcleos

numa sequência de despedidas

que embaciavam os olhos da mãe

e adensavam o silêncio do pai.


Então, do material de que a gente foi feito

fizeram-se outras bases

que agora se agregam em torno

da unidade própria de cada grupo

seu oco

suas idiossincrasias, essa palavra.


Assim foi que um dia

a diáspora

da mãe e do pai chegou a novos nove termos

e em não vendo seu fim, seguiu

vida afora, no rumo de sua própria 

dissipação.


Esparsos, os novos laços

também se desfizeram

tendo sobrado só um ou outro fio

mais reticente, grudado

na trama da memória 

como Páramo e Comala

no destino clandestino do clã.