12 de mai. de 2014

Um coração em agosto de carta de Paulo Mendes Campos a Otto Lara Resende

Henri Rousseau 

Olhe, irmão, o que me interessa nas coisas é o que elas poderiam ser. O que me atrai nas criaturas é a disponibilidade, essa linda e trágica espera incessante, esse constante vigiar das tentações, como se torcêssemos pela circunstância, pela pessoa, pelo demônio que viesse (que sempre parece vir) nos arrancar os trilhos para as cambalhotas da vida. Você há de ter observado, meu velho, um rosto, um olhar disciplinado e intimidade por séculos de civilização burguesa, você há de ter notado que nesses rostos costuma brilhar de vez em quando um anseio esquisito, uma luz que é bem uma sede de pecado, de desconhecido, de desastre. Instantes em que se revela em nós o pagão – o selvagem, o homem que deseja perder a própria vida e não ganhar. Vinte séculos de cristianismo não extinguiram em nós o gosto ácido do desprendimento, o amor impensado pelas coisas do mundo: sol, frutos, fêmea subjugada sobre a relva. Bem, irmão, esses momentos são tudo pra mim”.
(Trecho da carta de Paulo Mendes Campos a Otto Lara Resende, publicada pelo Instituto Moreira Sales, 2012, pg. 12, Um Coração em Agosto)

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