5 de jan. de 2015

A DESPEDIDEIRA : MIA COUTO


" ( ...) Há muito tempo , me casei , também eu. Dispensei uma vida com esse alguém. Até que ele foi. Quando me deixou, já não deixou a mim . Que eu já era outra , habilitada a ser ninguém . Às vezes , contudo, ainda me adoece uma saudade desse homem . Lembro o tempo em que me encantei , tudo era um princípio . Eu era nova , dezanovinha .
Quando ele me dirigiu palavra , nesse primeiríssimo dia , dei conta de que , até então , eu nunca tinha falado com ninguém . O que havia feito era comerciar palavra , em negoceio de sentimento . Falar é outra coisa , é essa ponte sagrada em que ficamos pendentes , suspensos sobre o abismo . Falar é outra coisa , vos digo . Dessa vez , com esse homem , na palavra eu me divinizei .
Como perfume em que perdesse minha própria aparência .Me solvia na fala insubstanciada .
embro desse encontro , dessa primogénita primeira vez . Como se aquele momento fosse , afinal , toda minha vida . Aconteceu aqui , neste mesmo pátio em que agora o espero .
(.....)
Nesse mesmo pátio em que se estreava meu coração tudo iria , afinal acabar . Porque ele anunciou tudo nesse poente .
Que a paixão dele desbrilhara . ( ...)
Pedi-lhe que viesse uma vez mais . Para que , de novo , se despeça de mim . E passados os anos , tantos que já  nem cabem na lembrança , eu ainda choro como se fosse a primeira despedida . Porque esse adeus , só esse aceno é meu , todo inteiramente meu .
Um adeus à medida de meu amor . Assim , ele virá para renovar despedidas . Quando a lágrima
escorrer no meu rosto eu a sorverei , como quem bebe o tempo .Essa água é , agora , meu único alimento . Meu último alento . Por isso , refaço a despedida .
Seja esse o modo de o meu amor se fazer eternamente nosso ."


in:  O Fio das Missangas.


Nenhum comentário: