17 de set. de 2016

Canetas emprestadas :: Armando Freitas Filho

A caneta do florista

tenta um floreio, mas a mão

que por empréstimo a empunha

não sabe fazer desabrochar

a flor no ar livre do papel

nem desenhá-la, sequer.

.

A caneta do porteiro

aponta o andar, e espera

que o ponteiro do elevador

acuse se o destino foi o certo

e a porta abriu ou não.

.

A caneta do jornaleiro

na verdade um toco de lápis

suado, oferecido como um mágico

que o tira detrás da orelha

tem a pressa da notícia, o furo

cabeludo do ouvido em primeira mão.

.

A caneta do amolador é uma faísca

um risco, um guincho que varia

que vaivém querendo afinar

o que vai dizer ou cantar agudo

de ouvido, sem partitura.

.

A caneta do garçom serve melhor

por que tem uma mesa à mão

onde o tempo não passa

como reza o ditado, por causa

da carne e do vinho?

.

A caneta do frentista

que apara o carro, e o redesenha

da carroceria ao para-brisa:

a poder de estopa, flanela e élan

com água e espuma meticulosas

que desembaçam a paisagem

os óculos escuros, os olhos

do motorista na longa via.

.

A caneta do ambulante

se expressa por garranchos:

voz alta, rouca, errada

aos arrancos, enquanto

perambula rua afora

entre pregão e correria

fixado camelô de si mesmo.

.

A caneta do médico

ao mesmo tempo

que prescreve a receita

vai costurando a ferida

ponto por ponto

e sua letra indecifrável

é o gráfico da cicatriz.

.

A caixa do supermercado

é de carne, rímel, coque

com a blusa do uniforme

aberta em três botões

que a desuniformiza no ato.

Sua caneta roxa vertical

não pode ser emprestada

pois anota compras sem parar

como a dos dois melões

que o comprador, na beirada

dela, também anota, sôfrego:

só que não são os mesmos.

.

O lavador de carros, sonolento

à beira do mar aberto – à toa –

não tem caneta, tem mangueira

balde, pano e muita água gasta

que dava para lavar um ônibus

na lagarteante tarde de sábado

que passava, desperdiçada, sem

que ninguém fechasse o registro.

.

As canetas dos meros transeuntes

se reúnem numa só: Bic!

Com sua elegância de atleta, esbelta

passando de mão em mão, masculinas

a maioria, azul, preta, no bolso

ou cravada, junto da jugular

na gola da camiseta, vermelha.

.

A caneta imprestável de alguém

quase sem carga, não serve mais

para acompanhar o pensamento

que iria se firmar a partir

da sua ponta esferográfica.

Por mais que tente recuperar-se

através de riscos irritados

falha, gaga, gasta, e se cala.

.

A caneta do chaveiro é à clef

por natureza, e se insere macia

no início, e depois estala:

com seu ruído de ferro fundido

ao dar as quatro voltas do segredo

na palavra-chave – La Fonte.

.

A caneta marca AMM

é à prova d'água, por isso

não precisa de diques, nada

e vai fundo, para o que der e vier.

É única, não é feita em série

e só funciona na mão dela.

Neste envoi, escrevo com a minha

e firmo: como é bom ter de novo

uma poeta chamada Ana.

ARMANDO FREITAS FILHO. Rol. Companhia das Letras, 2016

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