1 de ago. de 2017

Uma defesa do 'crime' de rabiscar em livros :: Gilles Lapouge


 André Martins de Barros
Não leio. Rabisco os livros. Eu os danifico. Coloco pontos de exclamação à margem. Sublinho palavras, risco os parágrafos. Acrescento “minha contribuição” à poesia que me deixa inebriado. Faço com que minha voz seja ouvida. Escrevo “bravo”, “exagerado” ou mesmo “magnífico”. Nos silêncios da narrativa engendro aventuras que o escritor não imaginou, mas seus heróis amariam viver. Às vezes critico o autor. Quando empresto um dos meus livros a um amigo, ele fica horrorizado: arruinei o “objeto sagrado”.

Sacrilégio! Desnaturei o poema. Mereço passar meu inferno fechado em uma biblioteca, vigiado por um diabo especializado em literatura que irá me repreender toda vez que aponto meu lápis para macular a beleza imarcescível de uma página. Onde estou com a cabeça? Ousarei acrescentar um grafite na Capela Sistina de Michelangelo? Irei ao Museu Rodin levando comigo um pequeno martelo para extrair alguns fragmentos de mármore com o fim de “melhorar” O Beijo, ou a estátua de Balzac?

Mas hoje me sinto mais confiante. Soube pelo jornal The New York Times que a New Library de Chicago publicou um livro reproduzindo comentários e anotações feitas a lápis em seus livros por leitores como o presidente Lincoln, Alexander Pope, Jane Austen, Walt Whitman ou David Thoreau. 

Um dos mais brilhares escritores políticos, o italiano Maquiavel, compartilhava comigo esse “vício”. Cobria seus livros de comentários marginais, apogiaturas, parênteses ou sinais incompreensíveis.

Também fiz uma pequena pesquisa e encontrei muitos “rabiscadores” de livros. O francês Montaigne, na Renascença, escreveu em seu próprio livro, Ensaios, inúmeros comentários ou objeções a ponto de no final compor um novo livro. O grande Petrarca escreveu no seu livro Confissões de Santo Agostinho tantas notas e comentários que serviram para um curso de filosofia, O Livre Arbítrio.

Meus “rabiscadores” preferidos são os mais tímidos. Aqueles que se contentam em acrescentar uma interjeição à margem, um comentário breve, ou simplesmente sinais de pontuação: pontos de exclamação, ou de interrogação. Eles não querem acrescentar ao texto original um novo texto. Sua ambição é outra: eles tatuam o livro, como algumas pessoas tatuam sua pele. Eles o esfolam, o dramatizam. Eles se apropriam do livro. 

Do mesmo modo que os poetas brasileiros “antropofágicos”, eles comem as letras, as mastigam, as digerem, e é um romance desconhecido que surge no final das suas obscuras fermentações. Outros, mais ingênuos, se satisfazem em “fazer amor” com o livro.

Por mais minúsculas, modestas ou misteriosas que sejam essas impressões furtivas deixadas por um desconhecido em seu livro de cabeceira, essas anotações, esses escólios, esses riscos ou essas interjeições acrescentam uma frase ao discurso original e essa frase é bela: “Para o melhor ou pior, é o comentarista que tem a última palavra”, disse Nabokov.

Mesmo traços simples, verticais, horizontais ou em diagonal, podem falar. Há uma dezena de anos, minha irmã mais velha que eu amava muito faleceu. E eu me encarreguei de ordenar algumas centenas de livros que ela possuía. Passava rapidamente os olhos neles. Ouvia o silêncio, a morte. 

Abri um cujo título era L’Echelle de Soie, de um autor conhecido nos anos 1960, mas um pouco esquecido nos dias de hoje, Jean- Louis Curtis. À medida que repassava aquelas páginas, percebi que não lia o romance de Curtis, mas os traços feitos por minha irmã nos brancos da página, sobre um adjetivo ou num trecho de uma frase, ou mesmo à margem. Vi assim se produzir diante dos meus olhos, com fragmentos de textos assinalados por minha irmã, do outro lado da morte, outro romance. 

Guiado pelos traços feitos a lápis, nas margens do livro, eu lia: “Cada pessoa é um enigma para todos e para ela própria. E ela morre sem ter revelado nem compreendido seu próprio segredo”. E mais longe, “talvez nada seja preferível a essa tentativa incansável e sempre frustrada pela qual se busca fundir em um núcleo de vida as duas solidões de um casal”. Algumas passagens mais: “Eu me perguntei por qual encadeamento de encantos e malefícios pude amar Anne e sofrer por causa dela”.

Eu perguntei a mim mesmo então porque minha irmã havia extraído aquelas frases, aqueles pequenos fragmentos de texto. 

Ligando aqueles fragmentos, interjeições, palavras sublinhadas, aqueles pontos de exclamação, reconstitui, me parece, uma história de amor infeliz que eu sabia que minha irmã tinha vivido quando era jovem e sobre a qual jamais contou a ninguém. E eis que nesse momento ela me fazia um relato desses anos dolorosos.

Senti-me indiscreto. E me dizia que os segredos jamais devem ser arrancados à força, mesmo se a morte permite que eles se façam ouvir. A morte em suma me propiciou abrir as gavetas de um armário proibido. 

Recusei-me a ir mais longe e ver outras confidências. E ao mesmo tempo me perguntei por que foi preciso que a morte chegasse para que paisagens proibidas fossem exibidas? Por que foi necessário se fazer o silêncio da morte para o silêncio fazer um pouco de ruído? 

Tradução de Terezinha Martino
Aliás, O Estado de S. Paulo  29 Julho 2017 

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