31 de out. de 2017

Cabecinhas brancas flutuantes :: Ruth Manus

Eu poderia facilmente listar centenas de coisas que me encantam na paisagem portuguesa. Poderia falar do céu azul quase invencível que se transforma diariamente em pôr do sol laranja, rosa, amarelo e lilás num ato que beira o desrespeito com os céus banais do resto do mundo. Poderia falar dos terrenos acidentados do Douro que abdicaram do aspecto de barranco aflitivo para se tornarem românticos, curiosos e convidativos. Ou poderia mencionar as desinibidas roupas coloridas penduradas nos varais das janelas, incluindo soutiens e calcinhas que balançam com o vento e panos de prato cansados que não se envergonham das manchas do tempo.

Poderia me lembrar da cara iluminada da minha amiga que, vinda de Paris para Lisboa, disse “parece que saí de uma televisão em preto e branco e cheguei a uma televisão em cores”. Ou do dia em que me sentei no alto do parque Eduardo VII e não fiz nada, absolutamente nada que não fosse simplesmente olhar para a cidade durante mais de 40 minutos, sem nem perceber que o vento gelado que entrava no meio dos meus cabelos causaria estragos bastante razoáveis na sequência. Poderia falar das flores roxas que despencam das janelas no princípio da primavera, contrastando com o céu azul como se estivessem num duelo de cores vibrantes.
Poderia falar das estradas do Alentejo que parecem um quadro interminável com suas árvores solitárias, seu sol baixo e seus terrenos calmos. Poderia falar daquele certo ângulo exato pelo qual se vê a basílica pelo meio das árvores do Jardim da Estrela, que é capaz de interromper a corrida do atleta mais disciplinado. Ou da vista da janela da casa da minha sogra, com direito ao Tejo calmo, ao movimento da ponte Vasco da Gama e às pessoas que passeiam rindo nas suas bicicletas. Poderia falar do sorriso contido das avós orgulhosas que passeiam com seus netos nos carrinhos pelas ruas planas e raras de Campo de Ourique.

Poderia fechar os olhos e me lembrar de intermináveis cenas bonitas. Mas não foi muito difícil eleger minha visão favorita em terras portuguesas. São elas. As misteriosas cabecinhas brancas flutuantes. A primeira vez que vi, confesso que me assustei. Na segunda, parei para olhar, intrigada. Na terceira, eu já achava curioso. Na quarta, eu comecei a ficar maravilhada.

Quando caminhamos por dentro dos bairros portugueses, seja nas aldeias pequeninas, nas vilas – maiores, porém ainda pequenas – ou nessa pequena-grande metrópole chamada Lisboa, lá estão elas. Velhinhas, vestidas com tecidos pretos diametralmente opostos à cor de seus cabelos. Lá estão elas, durante muitas horas dos seus dias longos, olhando pela janela, como se tivessem se tornado meras espectadoras da vida.

Não me canso de contemplar essa imagem. Parecem dezenas de pinturas verdadeiras espalhadas pelas ruas das cidades. As casas, escuras como as roupas, fazem com que a única coisa visível seja cada uma das cabeças brancas, que parecem flutuar naquele ambiente melancólico em que tudo é preto, exceto elas. Mas a melancolia começa a ser afastada por uma certa autoridade daqueles olhares que dizem “sei que já não sou protagonista, mas também sei que sou onisciente. Sei de tudo, vejo tudo, já vi de tudo”.

Trata-se de um improvável ponto de encontro entre alguma tristeza, alguma sabedoria, alguma obscuridade e muita calma. A solidão daquelas figuras, as histórias marcadas nas rugas daqueles rostos – às vezes serenos –, o breu daquelas casas invisíveis, a sensação de que o tempo passou rápido demais e depois simplesmente ficou estagnado naquelas tardes de terça-feira. É das coisas mais bonitas que já vi. Capaz de ofuscar o pôr do sol laranja, as vinhas do Douro, a cúpula da basílica, as árvores alentejanas ou as flores roxas despencadas.

O Estado de S.Paulo. 22 Outubro 2017

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