(...) Mas e a herança? Herança é um lance palpável. Daí que se existisse justiça nesse mundo a herança, a mais preciosa, se a natureza obedecesse a ela mesma, (se ela fizesse isso um boçal nunca seria presidente de uma nação, mas enfim) a herança mais linda, seria receber os dotes e experiências das pessoas. Tudo que a pessoa fez na vida, o que o nosso antepassado viveu. Sempre achei que a gente deveria receber era isso de herança, tipo, deixo à minha prima meus dotes e experiência em corte e costura, à minha neta, meu domínio absoluto do francês, do inglês e do italiano. Ficaria desejando receber de vovó, além daquele pendantif de pérolas e esmeraldas a doçura, a delicadeza e abnegação que permeou toda a sua vida na terra, como ela conseguiu tendo vivido situações tão devastadoras, ainda me pergunto. E a disputa familiar sórdida também seria ver pra quem papai deixaria sua experiência de piloto, comandante da Panair, e depois nos DC10 da Varig, ou o seu talento para fotografia, ou o seu fascínio pela física quântica. Tia Dite diria: para a minha afilhada querida, Angela, já que não tive filhos, deixo o meu talento para fazer bolos de três camadas envolvidas em glacê branco como nuvens e confeitos de Delicado. Essas seriam as verdadeiras heranças, ao se abrirem os testamentos. Então estaria lá, por conta do meu falecimento deixo para minha neta Luiza, que deverá obrigatoriamente passar para sua filha e de sua filha para todas as primeiras filhas desse ramo da família, todas as experiências que vivi nas Ìndias e nos navios de Maurício de Nassau, a caminho do Novo Mundo. Ou de Tia Esther, em sua última folha, em sua última frase. "Deixo para minha sobrinha, Angela, meu segredo de amor, o inconfessável. O amor tão intenso que eu jamais vivi." Cidades submersas.
Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
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