25 de jun. de 2020

Minha santa constância :: Noemi Jaffe

minha santa constância consoladora dos desconsolados, olhai por nós. olhai pelos cachorros peregrinando as ruas, procurando magotes de comer; olhai pela mulher que veio aqui hoje, na porta de casa, pedir dinheiro ou comida; olhai pelos velhos sozinhos, nas casas cansadas, assistindo uma tv que não pega bem; olhai pelos pipoqueiros das portas de cinema, cujos carrinhos descansam nos seus quintais; olhai pelas poltronas vazias dos cinemas e pela faxineira que tira o pó que se acumula sobre elas; olhai pelos garçons com seu paletó branco pendurado no cabide mais bonito do armário; olhai pelo garoto que guarda os carros na rua e que agora está pensando no sonho de ontem à noite; olhai pelo motorista de ônibus da linha 856R10 sentido Socorro, que acabou de parar na Rua Aurélia, onde subiu uma senhora cansada; olhai pela enfermeira Jurema, que chegou em casa agora mesmo e está preparando uma sopa reforçada com alho poró e que a faz lembrar da mãe, que mora em Uberaba: olhai pela cabeleireira que tinha finalmente comprado uma tesoura nova vinda do japão, que agora está na gaveta do criado-mudo; olhai pela dançarina de cabaré, que já repetiu o mesmo strip-tease dezesseis vezes para o seu marido; olhai também por mim, minha santa constância, para que eu também me lembre de por mais maizena no doce de ameixa e damasco para que a torta do joão possa ficar mais durinha do que ficou hoje à tarde.

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