É uma exortação aos jovens para que
não fiquem tristes, já que existem a
natureza, a liberdade, Goethe, Schiller,
Shakespeare, as flores, os insetos, etc.
Frankz Kafka
Um jardim
Peço silêncio
Minha história é longa e triste como a cabeleira de Ofélia
É um jardim desenhado em meu caderno. Madrugada. Instante dilacerante
em que a luz é tentação e promessa porque algo está morto, a noite.
– Só queria ver o jardim.
– Sou meu próprio espectro.
– Não se deve julgar o espectro porque se chega a sê-lo.
– Você é real?
– A imagem de um coração que enclausura a imagem de um jardim pelo qual choro.
– Ils jouent la pièce en étranger.[1]
– Sinto o mundo chorar como língua estrangeira.
– Das ganze verkerhrte Wesen fort.[2]
– Another calling: my own words coming back…[3]
Apenas buscava um lugar mais ou menos propício para viver, quer dizer: um lugar pequeno onde cantar e poder chorar tranquila de vez em quando. Na verdade, não queria uma casa; Sombra queria um jardim.
– Só vim ver o jardim – disse.
Mas cada vez que visitava um jardim comprovava que não era o que buscava, o que queria. Era como falar ou escrever. Depois de falar ou de escrever sempre tinha que explicar:
– Não, não é isso o que eu queria dizer.
E o pior é que também o silêncio a traía.
– É por que o silêncio não existe – disse.
O jardim, as vozes, a escritura, o silêncio.
– Não faço outra coisa além de buscar e não encontrar. Assim perco as noites.
Sentiu que era culpada de algo grave.
– Eu acredito nas noites – disse.
Não soube responder a isso: sentiu que cravavam uma flor azul em seu pensamento para que não seguisse o curso de seu discurso até o fundo.
– É porque o fundo não existe – disse.
A flor azul se abriu em sua mente. Viu palavras como pequenas pedras espalhadas no espaço negro da noite. Depois, passou um cisne com rodinhas com um grande macaco vermelho no interrogativo pescoço. Uma menininha que parecia com ela montava o cisne.
– Essa menininha fui eu – disse Sombra.
Sombra está desconcertada. Diz para si mesma que, na verdade, trabalha demais desde que Sombra morreu. Tudo é pretexto para ser um pretexto, pensou Sombra assombrada.
1-V-1972
[1] Eles encenam a peça em estrangeiro.
[2] [então, a palavra misteriosa] Destruirá toda a essência mentirosa.
[3] Outro chamado: minhas próprias palavras voltando…
[1] (N.E.) Este capítulo, a citação e o texto que segue, são de uma folha datilografada e corrigida a mão por AP, em pasta com a menção INÉDITOS onde figuram também os demais sob a denominação “Textos de Sombra”, na ordem que aqui se apresentam. As frases finais de “Um jardim” pertencem a Henri Michaux, Cecilia Meireles, B. Brecht e Sydney Keyes.
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