17 de ago. de 2021

O portão :: Lêdo Ivo

Monet

O portão fica aberto o dia inteiro

mas à noite eu mesmo vou fechá-lo.

Não espero nenhum visitante noturno

a não ser o ladrão que salta o muro dos sonhos.

A noite é tão silenciosa que me faz escutar

o nascimento dos mananciais nas florestas.

Minha cama branca como a via-láctea

é breve para mim na noite negra.

Ocupo todo o espaço da mundo. Minha mão desatenta

derruba uma estrela e enxota um morcego.

O bater de meu coração intriga as corujas

que, nos ramos dos cedros, ruminam o enigma

do dia e da noite paridos pelas águas.

No meu sonho de pedra fico imóvel e viajo.

Sou o vento que apalpa as alcachofras

e enferruja os arreios pendurados no estábulo.

Sou a formiga que, guiada pelas constelações,

respira os perfumes da terra e do oceano.

Um homem que sonha é tudo o que não é:

o mar que os navios avariaram,

o silvo negro do trem entre fogueiras,

a mancha que escurece o tambor de querosene.

Se antes de dormir fecho o meu portão

no sonho ele se abre. E quem não veio de dia

pisando as folhas secas dos eucaliptos

vem de noite e conhece o caminho, igual aos mortos

que todavia jamais vieram, mas sabem onde estou

— coberto por uma mortalha, como todos os que sonham

e se agitam na escuridão, e gritam as palavras

que fugiram do dicionário e foram respirar o ar da noite que cheira a jasmim

e ao doce esterco fermentado.

os visitantes indesejáveis atravessam as portas trancadas

e as persianas que filtram a passagem da brisa e me rodeiam.

Ó mistério do mundo! Nenhum cadeado fecha o portão da noite.

Foi em vão que ao anoitecer pensei em dormir sozinho

protegido pelo arame farpado que cerca as minhas terras

e pelos meus cães que sonham de olhos abertos.

À noite, uma simples aragem destrói os muros dos homens.

Embora o meu portão vá amanhecer fechado

sei que alguém o abriu, no silêncio da noite,

e assistiu no escuro ao meu sono inquieto.


 Poesia completa (1940-2004). Rio de Janeiro: Topbooks, 2004.

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