10 de mar. de 2024

DESENHO Cecilia Meirelles

  

Fui morena e magrinha como qualquer polinésia, 

e comia mamão, e mirava a flor da goiaba. 

E as lágrimas me espiavam, entre os tijolos e as trepadeiras, 

e as teias de aranha nas minhas árvores se entrelaçavam 


Isso era um lugar de sol e nuvens brancas, 

onde as rolas, à tarde, soluçavam mui saudosas... 

O eco, burlão, de pedra, ia saltando, 

entre vastas mangueiras que choviam ruivas horas. 


Os pavões caminhavam tão naturais por meu caminho,

e os pombos tão felizes se alimentavam pelas escadas,

que era desnecessário crescer, pensar, escrever poemas, 

pois a vida completa e bela e terna ali já estava. 


Com a chuva caía das grossas nuvens, perfumosa! 

E o papagaio como ficava sonolento! 

O relógio era festa de ouro; e os gatos enigmáticos 

fechavam os olhos, quando queriam caçar o tempo. 


Vinham morcegos, à noite, picar os sapotis maduros, 

e os grandes cães ladravam como nas noites do Império. 

Mariposas, jasmins, tinhorões, vaga-lumes 

moravam nos jardins sussurrantes e eternos. 


E minha avó cantava e cosia. Cantava 

canções de mar e de arvoredo, em língua antiga. 

E eu sempre acreditei que havia música em seus dedos

e palavras de amor em minha roupa escritas. 


Minha vida começa num vergel colorido, 

por onde as noites eram só de luar e estrelas. 

Levai-me aonde quiserdes! - aprendi com as primaveras 

a deixar-me cortar e a voltar sempre inteira. 


CECÍLIA MEIRELES 

in Mar Absoluto, 1945


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