30 de set. de 2024

A noite em que encontrei Chagall. :: Angela Becker

Num certo natal, ganhei um livro do pintor Marc Chagall

suas cores de vitral, topázios, ametistas

choveram sobre mim

como nunca houve notícia

e compreendi, afinal,

toda a ternura começara neste artista.

.


Um delírio de cores

formava à minha volta

uma iluminura


escancarei a janela 

pra que a noite e seu luar

entrassem por ela


Ah como queria de Chagall uma aquarela!

queria mais, queria que ele me pintasse numa tela

.

Acreditei que bastasse eu desejar muito, muito

e ele viria

e eu pedia, noite e dia, eu pedia


.


E eis que numa noite dessas

muito estrelada

sem alarde nem trombetas

chegaram dois de seus anjos violetas:

-Chagall virá esta noite, disseram, com voz nacarada

-Obrigada, respondi

quase esquecendo a etiqueta.

.


e saí para a noite de diamantes bordada

ele virá flutuante, amante que é de flutuar

descerá pela via láctea

e pousará neste gramado verde-esmeralda

.

escutei murmúrios e adejar de asas

são seus anjos, seus bois bizantinos,

casas, cristos e rabinos

.

a noite era como devia ser: sagrada

uma lua prateada derramava leite de madona lactante

desci as escadas

trazia comigo um turbante,

flores e um peito arfante

.


e eis que o vejo

já dispondo as cores no cavalete

ele não falava, não precisava

.


ajeito-me como maja desnuda

sobre o fino tecido que desliza

.

ele me estuda

.

partes de mim se adelgaçam,

partes de mim se arredondam

tudo está preparado para o evento.

.

e assim Chagall começa seu fino lavor

habilidosamente

e sou, então, transferida para a tela

enfim, definitivamente.

...........


imagem: Marc Chagall


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